Os seis valores de Ítalo Calvino aplicados à Educação
Texto de José de Castro
*
“Oh que estrada mais comprida/
oh que légua tão tirana/
ah se eu tivesse asas/
inda hoje eu via Ana...”
Os versos
acima, cantados por Luiz Gonzaga apontam para um elemento fundamental da modernidade:
a leveza. Esse é um dos seis valores propostos pelo escritor ítalo Calvino em
sua obra Seis propostas para o próximo
milênio: lições americanas (1990).
Em 1984, Calvino foi convidado a
proferir as Norton Lectures, que se compõem de um ciclo de
seis palestras ao longo de um ano acadêmico junto à Universidade de Harvard, em
Cambridge, no estado de Massachussets (USA). Essas palestras tiveram início em
1926, delas participando personalidades como T.S. Eliot, Igor Stravinsky, Jorge
Luis Borges, Northrop Frye, Octavio Paz, dentre outros. Pela primeira vez se convidava um escritor
italiano.
As palestras
de Calvino seriam proferidas no período entre 1985/86. Os convidados tinham a
liberdade de escolher o tema sobre o qual discorreriam. Calvino elegeu seis
temas: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência,
relacionando-os ao mundo da literatura universal e tratando-os como valores a
serem preservados pela humanidade para o terceiro milênio. Desses temas,
faltou-lhe desenvolver apenas “consistência”. Desafortunadamente, Calvino não
chegou a proferir as palestras, pois veio a falecer antes. Essas palestras
foram publicadas no Brasil sob o título Seis
propostas para o próximo milênio (1990).
Nesse texto, procurar-se-á relacionar e aproximar, de forma
resumida, esses seis valores com o mundo da educação, de como eles podem ser
úteis para enriquecer, iluminar ou servir como referência ou mesmo inspiração
para o trabalho didático-pedagógico dos profissionais educadores. Não se trata,
aqui, de se apoiar de maneira direta e de se dissecar o pensamento de Calvino,
porém usá-lo como uma alegoria, uma fonte de inspiração.
Aqui, não se vai seguir a ordem da edição do livro, mas o
caminho inverso, inciando daquela que seria a última proposta: a consistência.
Ela será a base, o primeiro estágio de uma escalada pedagógica.
Imagine, então, esses valores como os degraus de uma escada,
como uma trajetória a ser percorrida numa jornada-aventura pedagógica de
ensino-aprendizagem.
CONSISTÊNCIA
Mas talvez a inconsistência não esteja somente na
linguagem e nas imagens: está no próprio mundo. O vírus ataca a vida das
pessoas e a história das nações, torna todas as histórias informes, fortuitas,
confusas, sem princípio nem fim.” (CALVINO, 1990, p. 73)
Esther Calvino, esposa de Ítalo Calvino, relata no livro Seis propostas para o próximo milênio (1990) que, do tema consistência,
encontrou apenas alguns apontamentos que indicavam que, naquela palestra, ele
pretendia fazer referências ao Bartleby, o escrivão de Wall Street, de Herman
Melville, obra genial e controversa.
A consistência é uma qualidade que precisa estar presente em
todas as atividades humanas, nos espaços ameaçados pela inconsistência, o
“vírus” de que fala Calvino. Um educador consistente é aquele que pratica o seu
ofício com uma base sólida de conhecimentos, com fundamentos adequados que lhe
garantem um trânsito seguro pelo mundo do saber, mas conservando sempre a
atitude de dúvida, de observação questionadora.
Consistência pode ser sinônimo de “saber especializado”, mas também pode
indicar polivalência, capacidade de extrapolar e de conjugar fronteiras do
conhecimento. Nesse sentido, esse degrau é preparatório para o ingresso na
multiplicidade de dimensões que englobam o que-fazer pedagógico.
MULTIPLICIDADE
[...] quem
somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de
informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma
biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode
ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.” (CALVINO, 1990, p 138)
Um educador consistente não tem nenhum receio de se aventurar
pelos inúmeros caminhos que se apresentam à sua frente no desempenho das
tarefas de orientador de aprendizagem, de pesquisador, de guia. Múltiplas são as teorias, inúmeras são as
ferramentas e várias são as abordagens e as metodologias que podem ser
empregadas para favorecer o processo de ensino-aprendizagem. Múltiplas são as dúvidas e as indagações que
o mundo do saber lhe apresenta como desafios. Qual é o melhor ponto de partida
para se disparar um processo de investigação consequente? Como incentivar a
leitura prazerosa? Diversos são os caminhos: temas geradores, contextualização,
interdisciplinaridade, aprendizagem significativa, aprendizagem colaborativa,
construção de competências, pesquisa, avaliação mediadora, teoria e prática,
ação/reflexão, para citar apenas alguns dos ingredientes que fazem parte do
mundo de um educador. Todos os caminhos adotados podem ser múltiplos de si
mesmo e formarem um imenso caleidoscópio que precisa guardar coerência e
assegurar, mesmo na diversidade, a consistência necessária ao educador
competente, aquele que acredita nas múltiplas possibilidades de descoberta que
o seu aluno poderá fazer para construir o seu conhecimento. Esses alunos, que
também são múltiplos; de várias
idades, que trazem diversas experiências de vida; de diversas áreas da
atividade humana, que estão ansiosos para descobrir e reinventar o mundo; esse mundo de milhares de faces,
habitado por milhões de seres humanos. Como diz Calvino, cada vida é uma
enciclopédia. Resta ao educador seguir o conselho poético de Cecília Meireles:
“Multiplica os teus olhos, para verem mais [...] Destrói os olhos que tiverem
visto./Cria outros, para as visões novas.” (MEIRELES, 1982, Cântico XIII)
Esses olhares multiplicados poderão descortinar novos
horizontes com mais acuidade:
visualização, visibilidade, o próximo passo da escalada.
VISIBILIDADE
Penso numa possível pedagogia da imaginação que nos
habitue a controlar a própria visão interior sem sufocá-la e sem, por outro
lado, deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas permitindo que as
imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável, auto-suficiente,
‘icástica’. (CALVINO, 1990, p. 108)
Esta é uma civilização da palavra, mas também da imagem.
Calvino, em sua obra As cidades
invisíveis (1990) utiliza-se da palavra para descrever os cenários mais
fantásticos, imaginativos e improváveis.
Cidades duplas, cidades emaranhadas em cordas, cidades-reflexo uma da
outra, habitantes inusitados, seres múltiplos, idiossincráticos. Essa riqueza
de imaginação é a capacidade de visualização de novos mundos. Os educadores
precisam estimular sua própria capacidade imaginativa criadora.
Sem visão, sem imaginação, o mundo seria árido e vazio.
Construir o mundo que se pensa, realizar o sonho que se imagina, passo a passo,
com determinação e alegre compromisso. Perseguir metas, imaginar utopias. Com
isso, é possível reinventar o mundo.
Um educador consistente, de múltiplos saberes, enciclopédico
e ao mesmo tempo não ortodoxo, haverá de cultivar em si e buscará emular em
seus educandos essa capacidade de imaginar novas possibilidades de ler o mundo, de fazer projeções, de abrir
os olhos para visões novas, criativas, inventivas, plenas de interpretações que
possibilitem a ressignificação do mundo.
Essa imaginação criadora, conforme Calvino, não deverá cair
no “passageiro fantasiar”, mas haverá
de permitir que a fantasia, o sonho, a imaginação sejam lugares dentro dos
quais caia uma chuva imaginativa, uma
tempestade cerebral. Lugares onde criatividade, fantasia e imaginação funcionem
como fertilizantes do mundo pedagógico, fazendo germinar o conhecimento exato,
necessário ao mundo contemporâneo, a busca de certezas dentro de tantas
incertezas desse mundo. A imaginação criadora pode emular e valorizar a
exatidão pedagógica demandada pelas necessidades da construção do conhecimento,
de maneira lúdica e prazerosa.
Segue-se mais um degrau, o da exatidão.
EXATIDÃO
Para mim, exatidão quer dizer principalmente três
coisas: 1) um projeto de obra bem definido e calculado; 2) a evocação de
imagens nítidas, incisivas, memoráveis; temos em italiano um adjetivo que não
existe em inglês, ‘icástico’, do grego...; 3) uma linguagem que seja a mais
precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do
pensamento e da imaginação. (CALVINO,
1990, p. 72)
A exatidão é uma qualidade ou valor a ser buscado pelo homem.
No mundo da educação, que lida com vários campos do conhecimento, inclusive com
as chamadas ciências exatas, esse fator torna-se crucial. Afinal, as chamadas
ciências exatas não são tão exatas assim. Essa exatidão sempre é relativa a um
determinado tempo, época ou contexto. Não
se pode contar sempre com acertos. Há ensaio e erro, o que leva às
descobertas. Inclusive, às vezes com a concorrência do acaso.
Nesse sentido, Pedro Demo (2000, p. 171) afirma: “Esperávamos demais do conhecimento
científico, precisamente a certeza. Até descobrirmos que seu produto mais nobre
é a incerteza, se a entendemos como método de questionamento permanente.”
Há uma longa trajetória para se chegar à exatidão, caminhos e
descaminhos, um deles o do erro. Segundo Demo, citado anteriormente, o erro é
um dos melhores coadjuvantes da criatividade. Para Gianni Rodari, autor da obra
Gramática da Fantasia (1982), deve-se
considerar o erro como uma oportunidade pedagógica para incentivar uma
aprendizagem criativa. Aliás, Rodari batiza-o de “erro criativo”. Um exemplo
citado pelo autor, referindo-se ao erro ortográfico: “A ‘hora’ transformada em ‘ora’, pede demissão do
relógio e vai trabalhar na gramática, como conjunção ou advérbio”. (RODARI,
1982, p. 34)
O educador não pode, simplesmente, condenar o erro em seus
alunos, pois, a partir dele os alunos podem construir novas possibilidades de
entendimento ou até mesmo de ressignificação, uma ponte de ligação e estímulo a
novas vertentes exploratórias do conhecimento.
A busca da exatidão é um processo que se dá ao longo do
tempo. Exatidão em planejamento não significa excluir a flexibilidade, a
sensibilidade para a correção de rotas.
Exatidão, comumente relacionada à objetividade, não pode desconsiderar
as dimensões subjetivas que envolvem todo projeto humano. Rigor científico não
significa rigidez mental. Flexibilidade e sensibilidade são necessárias, mesmo
porque não se pode perder de vista a velocidade com que o mundo está se
transformando. E as ideias e a busca de soluções precisam também correr
ligeiras no embate desses desafios. Velocidade, rapidez. O próximo degrau.
RAPIDEZ
Qualquer valor que escolha como tema das minhas
conferências - já disse a princípio –
não pretende excluir o seu valor contrário: assim como em meu elogio à leveza
estava implícito meu respeito pelo peso, assim esta apologia da rapidez não
pretende negar os prazeres do retardamento. (CALVINO, 1990, p. 59)
Para Calvino, a literatura consegue, nos textos curtos,
através das elipses espaço-temporais, eliminar as distâncias, redimensionando a
dicotomia espaço/tempo narrativo, abreviando, encurtando, fascinando o leitor.
O conto curto, minimalista, o haicai, a aldravia, o poetrix são alguns dos
gêneros que conseguem, de forma econômica e rápida, dizer muito com poucas
palavras.
Que lições pedagógicas tirar dessa rapidez da linguagem? Não
será, evidentemente, o aligeiramento das abordagens didático-pedagógicas, da
simplificação, da banalização ou da trivialização de conceitos e de conteúdos.
A rapidez de que fala Calvino está presente nas transformações que vem
ocorrendo no mundo. A evolução tecnológica, o avanço das mídias e de suas
linguagens, cada vez mais sintéticas, mais atraentes, vem trazendo uma série de
desafios para a escola. Há um volume crescente de informações, um verdadeiro
“tsunami” que invade a vida de todos. Rapidamente as distâncias se encurtam e
há uma urgência em conseguir processar, analisar, interpretar e qualificar esse
mundo de informação que a internet veicula, que nem sempre significa conhecimento
ou sabedoria. Há muito lixo, muita insensatez e desvario. Será que os
educadores estão preparados para enfrentar esse desafio, essa corrida contra o
tempo? Há uma urgência em formar o bom leitor, aquele que sabe ler e
interpretar esses códigos de maneira crítica, de modo a separar o “joio do
trigo” e desse extrair as lições de vida adequadas a um existir ético,
sensível. Capaz de retirar todo o peso do mundo, surfando com leveza por sobre
essa gigantesca onda de informações. Está a escola preparada para fluir uma
pedagogia da leveza? Este é o ápice dessa escada.
LEVEZA
Cada vez que o reino humano me parece condenado ao
peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro
espaço. (...) As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a
realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos... (CALVINO, 1990, p. 19)
Os educadores, ao modo dos pássaros, precisam criar asas e
alçar o voo da imaginação criativa para conseguir subir cada vez mais alto em
sua jornada pedagógica. É preciso, como os grandes mestres da literatura que
conseguem retirar o peso das palavras, eliminar todo o “pesadume” da pedagogia.
Não sob a forma de superficialização, mas na busca de ferramentas, metodologias
e linguagens adequadas às necessidades dos educandos e capazes de acompanhar e
dar conta dos avanços no mundo contemporâneo. Uma linguagem que seja leve,
atraente, sedutora, bem-humorada, que inaugure as dimensões da alegria e do
prazer de aprender dentro dos espaços da escola. Esse ideal de leveza vem no
rastro de um longo caminho, desde a base consistente dos fundamentos
educacionais. Passa pela multiplicidade de alternativas pedagógicas possíveis e
desejáveis. Através da capacidade de visualização, vislumbra novos horizontes
para o exercício do aprender a aprender. Esmera-se, como o cristal, na
transparência, na exatidão do proceder correto, no respeito ao universo e ao saber do aluno.
Respeita o ritmo da aprendizagem de cada um. Raciocina com rapidez, mas pondera
de forma sensata. Sabe que a melhor pedagogia é a do exemplo. Portanto, o
educador da leveza traz no sorriso e no olhar o acolhimento ao seu aluno, e a
certeza de que há sempre algo novo a descobrir, há um mundo novo a reinventar.
A leveza, portanto, inclui o peso do compromisso e uma enorme
responsabilidade com a própria formação. Os degraus do conhecimento sobem e
descem, espiralam, se confundem. Se há leveza, há consistência. E vice-versa.
Alfa e Ômega. De volta ao começo. Aprendizagem é uma estrada fascinante, um
eterno recomeço, uma jornada sem fim. O educador da leveza sabe dialogar com o
seu aluno. Compreende o mundo do qual ele vem. O mundo que o aluno precisa
aprender a ler e a registrar também, com leveza. Nada de ser muito rígido,
senão a sua pedagogia se quebra. Tem que ter a flexibilidade que acredita na
grande riqueza que é o processo de construção da aprendizagem. Como um voo de
pássaro que sabe que o mundo é vasto e que asas fortes para se voar leva-nos
longe. Para além de todas as miudezas,
visando a um mundo em que haja mais dignidade e respeito por todos. Os seis
valores de Calvino podem nos ajudar, em nossa pedagogia, a enfrentar todos os
desafios que nos são colocados no Brasil de hoje. E construir uma escola
melhor, que fale a linguagem do educando e que o faça entender-se a si, ao
outro, e ao mundo. E aprenda a se reinventar a partir de uma visão crítica. Com
consistência, multiplicidade, exatidão, visibilidade, rapidez e, acima de tudo,
com leveza.
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PS.
Interessante registrar que esses mesmos seis valores ou dimensões que Ítalo
Calvino prescreve para a literatura, fazem parte das orientações da Bula
Poetrix, da Academia Internacional Poetrix (da qual faço parte, com assento na
cadeira 11), a qual recomenda que os poetrixtas procurem seguir essas
orientações em suas criações de poetrix.
*José de Castro, jornalista, escritor, poeta. Mestre em
Tecnologia da Educação pelo Instituto de Pesquisas Espaciais – INPE/SJCampos -
SP, professor aposentado do Departamento de Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Autor de livros para adultos (poemas, humor) e para
crianças e adolescentes. Membro da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN, da
União Brasileira de Escritores – UBE/RN e membro correspondente da Academia de Letras,
Artes e Ciências Brasil – ALACIB/Mariana/MG. Contato: josedecastro9@gmail.com
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Ítalo. Seis
propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
____________As cidades
invisíveis. Tradução Diogo Mainardi – São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
DEMO, Pedro. Certeza
da incerteza: ambivalências do conhecimento e da vida. Brasília: Plano,
2000.
MEIRELES, Cecília. Cânticos.
São Paulo: Moderna, 1982.
RODARI, Gianni. Gramática
da fantasia. Tradução de Antonio Negrini – São Paulo: Summus, 1982.
SEED. Salto para o
futuro: reflexões sobre a educação no próximo milênio. Brasília: Ministério
da Educação e do Desporto, SEED, 1998.
Salve, poeta Gilberto Cardoso dos Santos. Uma alegria ter um texto meu publicado neste conceituado blog. Já estive em Santa Cruz, quando ainda existiam os eventos do PROLER/RN. Gosto desta cidade. Espero poder voltar aí para algum evento de leitura e escrita. Forte abraço.
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