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sábado, 21 de setembro de 2024

POSSES PARA HOJE - Maciel Souza



POSSES PARA HOJE (Maciel Souza)


Na fila do trânsito, o celular toca, e outro dia na fila do banco. As palavras se repetem: 

- Que horas você volta? Só pra saber. 

Paciência nem sempre temos, mas convenhamos: quem é que me liga só pra saber? Saber onde estou, como estou...

Há quatro anos, era quase meio-dia quando ela chegou, depois de uma manhã com alunos do ensino infantil, olhou para a pia e suspirou profundamente. Desde então, decidi enfrentar todos os dias a tal pia e sua pilha de louça suja. Ela foi bem perseverante, pois só depois me confessou que, no início, quis me desestimular devido à má qualidade do serviço prestado, mas hoje sou expert no assunto e até defendo certas teorias, como a de que a quantidade de louça suja não é proporcional ao número de pessoas, pois, se em vez de dois fôssemos oito, por exemplo, numa refeição seriam acrescentados apenas itens como pratos, copos e talheres.

Na manicure, certa vez fofocavam sobre o novo Ricardão, o mais recente “pé de lã da cidade”:

- Mas vocês sabem alguma coisa sobre Maciel? Se souberem, não me escondam!

- Mulher, Maciel é um santo!

Fugindo dos preceitos de santidade, já passamos dias sem trocarmos uma única palavra, fazendo refeições juntos, dormindo juntos e eu entregando a louça limpa, até que um ou outro decida descer do pedestal do orgulho. Mas a maior prova de consistência no nosso relacionamento foi há trinta e três anos, quando casamos. A nossa casa não tinha piso, nem reboco nas paredes, mas era engraçada, graças ao nosso bom ânimo e perseverança. Hoje, colhemos flores do nosso próprio jardim:

- Pai! Converse com mãe, que não tem condições não. Eu atendendo um cliente, ela liga só pra perguntar se já tomei café.

- Certo! Vou falar com ela!

Cecília, doze anos de idade:

- Vovô, me dá duzentos reais todo mês!

Manuela, cinco anos de idade:

- Vovô, eu liguei pra você, mas você nem atendeu, a riqueza de vô! Esse seu olho, vovô, “tá” ficando azul.

- Eu sei, Manuela, e não enxergo por ele!

- É, vovô, mas olho azul é bonito! – E, quando Adriana reclamou da bagunça que fazem aqui em casa:

- Mas vovô disse que a casa fica feliz.

Só pra constar e para que minha crônica não fique tão curta, existe um contrato com Cecília, cujos repasses mensais dependem de cláusulas assumindo compromissos com relação à escola, afazeres domésticos, autodidatismo, altruísmo e princípios de educação financeira. Cláusula 4: “Por estarem em comum acordo, declaram-se cientes e esclarecidos quanto ao teor deste instrumento e firmam em duas vias para que produza os devidos efeitos legais”. Manuela ainda se contenta com moedas e não reclama de uma dívida já caduca: foi quando propus que contasse a história dos Três Porquinhos e toda vez que falasse a palavra “lobo”, ganharia cinco reais. Quando o lobo estava ainda soprando para derrubar a segunda casa, propositalmente ela já tinha falado oito vezes a palavra de grande valor.

Este parágrafo inteiro dedico a Silmara. Ela cuida tão bem deste trio: Antoniel, Cecília e Manuela. 

É bíblico que “Quem encontra uma esposa encontra uma coisa excelente e alcança o favor do Senhor...” (Provérbios 18:22) e, de minha autoria, retomo um poema antes datilografado, exposto num quadro de madeira, pendurado por último na parede de nossa sala rebocada, engessada e pintada, mas destruído pelo cupim; enquanto que, pelo gênero textual escolhido, a poesia continua intacta, atualizada, de conteúdo blindado, resistindo ao tempo e ainda aqui salva o título da crônica, até então sem nenhuma relação com o que escrevi:


POSSES PARA HOJE

Quero palavras selecionadas, bem comportadas, a falarem por nós, talvez ao tempo.

Quero que sejam rápidas. Às vezes as palavras demoram e nossos significados são de ontem.

Quero a linguagem pura, desprovida do sentimentalismo exagerado e do racionalismo extravagante.

Quero a criatividade aguçada, o entregar-se como ontem.

Quero todos os sentidos, nossos sentidos, nosso concreto e nosso imaginário que se fundem.

Quero a sua simplicidade e a vaidade inibida, que pensa despercebida, entre nós, os transeuntes.

Quero o grito e o seu silêncio.

Quero tê-la para sempre.

Quero amá-la mais que ontem.


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