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terça-feira, 17 de setembro de 2024

A CARROÇA E O FOGUETE

 


A CARROÇA E O FOGUETE 

A folha em branco olhou para o escritor, que, por coincidência, também a observava. Para ela, a situação era confortável, pois não precisava de mais nada para ser o que sempre foi, diferente do escritor que precisava cumprir sua meta de transformar aquele espaço em literatura.

O leitor, impaciente, esperava algo interessante para continuar lendo. Alguém disse que aquele trio estava há muito interligado, e não era naquela manhã que a amizade deixaria de existir pelo simples fato do escritor estar cansado, o leitor entediado e a folha em branco... ah, essa nunca mudava sua postura de ser silenciosa e paciente. Ela esperava, na sua palidez costumeira, o momento para ser rascunhada, amassada e jogada fora.

O tempo passava enquanto a caneta perdia sua tinta em vão, e mesmo sujando a folha, essa continuava no branco das ideias, até que enfim os rascunhos foram expulsos pela própria folha, que já não aguentava mais ficar impassível diante de tanta sujeira. Vá fazer isso em outro lugar, gritou ela para o pobre escritor que nunca havia sido mandado embora. Mude de profissão, gritou mais uma vez a rebelde folha, tomando conta do filtro por onde passavam todas as palavras. Você passa, você não, e assim ela começava seu reinado.

Essa folha está estranha, disse o escritor para quem quisesse ouvir, só que naquele ambiente sem fotos nem vídeos, ninguém mais estava presente para ouvi-lo resmungar, pois estavam sim, sorrindo e passando o dedo na tela, em busca  de mais conteúdos. Seu reinado acabou, disse o celular. Agora o que vale são os vídeos coloridos e as fotos acompanhadas por trilhas sonoras, visando transformar o pensamento em algo leve, livre e solto.

O assíduo leitor estava acuado, pois era até criticado se abrisse um livro em público. Resolveu ir para as cavernas, levando velas para iluminá-lo na difícil tarefa de soletrar um pouco. Lá nas catacumbas, o frio o acompanhava, sem que ele percebesse que estava sendo empurrado em direção a mudanças de costumes. Ler já não era tão valorizado quanto antigamente, e ele dizia para o escritor: A que ponto chegamos. Somos caretas por querer viver das sobras de um tempo em que se escrevia e lia com avidez.

Um pássaro pousou na flor querendo beijá-la, e logo câmeras foram apontadas para registrar aquele beijo. Ninguém com caneta e papel se atreveu a fazer poesia do beijo costumeiro do beija-flor. Para quê anotar aquilo se uma foto bastava?, pensavam os internautas esperançosos pela imagem azul-esverdeada do bicho no contraste da rosa.

Ao fundo, uma cachoeira rodeada de verde trazia para os olhos um colírio, enquanto a tinta preta prejudicava a visão do míope que insistia em ler. O leitor continuava a exercitar seu prazer sem saber quem dizia o quê, tendo em vista que o escritor já nem sentia mais vontade de explicar quem era quem na narrativa. Ninguém está lendo mesmo, pensava o escritor numa performance suicida. Avaliava-se e se perguntava o porquê de estar insistindo com aquilo. Narrava e olhava as imagens conseguidas através do frame de arte que ele mesmo não podia deixar de consumir. Verdade fosse dita: era fantástico.

As palavras, que um dia foram suas companheiras constantes, agora pareciam distantes e quase alienígenas. Ele tentava desesperadamente recuperar a paixão pela escrita, mas se via cada vez mais atraído pela superficialidade das imagens e dos vídeos que preenchiam seus dias. Desiludido, começava a questionar o propósito de sua arte. O mundo havia mudado de tal forma que parecia não haver mais lugar para o esforço silencioso e meticuloso da escrita. Em vez disso, a narrativa visual e rápida dominava a atenção do público. Sentia-se um artista em um museu empoeirado, sem lugar no mundo acelerado e visual que se formava diante de seus olhos.

Procurava a experiência da escrita, e em sua solidão, percebeu que, embora os tempos mudassem, a essência da narrativa e o desejo de mergulhar em histórias profundas permaneciam dentro dele. Ele sabia que essa  experiência, por mais desafiadora que fosse, oferecia algo que nenhuma imagem ou vídeo poderia capturar completamente: o mergulho introspectivo e a conexão emocional única que se forma entre o escritor e o texto.

Heraldo Lins Marinho Dantas 
Natal/RN, 17.09.2024 - 06h36min.









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