sexta-feira, 15 de abril de 2022

TUDO DEIXA SAUDADES - Heraldo Lins

 


TUDO DEIXA SAUDADES


São duas horas da manhã e o sono escapuliu deixando-me com a única alternativa de rolar na cama. Ele está acumulado, mas resolveu me deixar na mão para que mais tarde possa, entre um cochilo e outro, assustar-me com o trrrrrrrriiiiiim tenebroso do despertador.

A cidade dorme e eu achando que dominava meu sono. Uma coisa tão simples como fechar os olhos e esquecer o mundo, fecho, mas não esqueço. Já conheci momentos bons de sono profundo, hoje ele me deixa alerta só para dizer que quem manda são eles, as vontades do corpo.

Acredito que isso tem a ver com minha arrogância. Esse sono, por ser meu, também é arrogante tanto quanto a dor e a fome. São imperialistas e vivem me deixando reféns das suas vontades.

Quero, mas não consigo, manter-me senhor dos meus sentimentos: quero amar alguém, e vem o ódio; quero me sentir saciado,  e me vem a fome; quero lembrar-me, vem o esquecimento.

O sono hoje resolveu ser a bola da vez. Ultimamente ele está assim. Começa a me derrotar por volta das 21 horas, e já às duas da manhã acorda-me dizendo que quer falar comigo. Pergunto o que é, e sou informado que está na hora de sofrer a falta dele.

Fico escutando música, assistindo vídeos, palestras, e ele olha para mim e rir. Diz que não será enganado em troca de um bocejo. Assiste tudo comigo mantendo-se à distância.

Ontem eu gravei uma denúncia dizendo ao mundo que estava refém da insônia, e logo fui acudido. Dormi feito um anjo, mas ele se vingou na forma de apresentar seu espetáculo. Colocou em cena um touro preto, correndo atrás de mim, com chifres espanhóis de dar medo. Fiquei o resto da madrugada tentando fugir desse touro. Nem os meus sonhos eu domino.

Amanheci o dia pensando que é por isso que o homem é infeliz: não manda, de forma absoluta, em nada que compõe seu organismo. Pode até mandar no automóvel ao acelerar, na torneira ao abri-la, entretanto, não tem domínio sequer em um querer.

Eu desconfiava que o açúcar tinha influência em uma noite mal dormida. Passei a evitar, à noite, qualquer coisa doce, todavia, o resultado continua.

O ideal, pensei, é ajudar às pessoas que estão hospitalizadas, só assim fico “aceso” e contribuo para alguém dormir protegido. Fui ao hospital e fiquei cuidando de um velhinho. O senhorzinho tinha mania de fechar as portas. A todo instante, acordava e me mandava fechá-las.  Eu dizia que a porta estava fechada, e ele dizia que seus filhos haviam passado e deixado aberta. Falei que estávamos no hospital, onde ele, de imediato, perguntou: quem disse?

Antes da cirurgia fui dar banho no velhinho. O enfermeiro havia me dado um saco com as roupas do hospital e depois do banho comecei a vesti-lo. Como não tinha prática,  coloquei a camisa do hospital com a abertura para a frente. A Jiboia do velho ficou toda para fora. Ele disse: cadê minha cueca? É assim mesmo, não tem cueca. Não tem homem que faça eu sair daqui nu! Que vergonha a pessoa ficar nu diante dessas mulheres.

A cueca estava num saquinho que o  enfermeiro me orientou a vesti-lo. De vez em quando, antes da cirurgia, o velho reclamava que iriam matá-lo de fome, e quando o médico chegasse perguntando pelo paciente, diriam: morreu de fome e sede.

Voltei do hospital com uma saudade imensa da minha santa insônia.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 13.04.2022 – 21:17





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