quarta-feira, 16 de março de 2022

TRANQUILO E CALMO - Heraldo Lins



 TRANQUILO E CALMO


 Suas pernas doem há mais de vinte anos. Um dia mais de que outros, mas a dor nunca passou totalmente. Se pudesse mandava cortá-las. Bom-dia,  seu Martins, está me reconhecendo? Estou surdo, isto sim, este aparelho auditivo não serve para nada! Sei que você está falando porque estou vendo o abrir e fechar da boca, mas escutar que é bom, só uma coisinha, lá longe. Sou Marçal, neto de dona Ester, lá de Angicos. Ah! Sim, como ela está? Já morreu há três anos. Menino, só eu que não morro! Muita gente morrendo, e eu aqui, vivinho da Silva. 

A rotina de seu Martins se resume a ficar na área olhando quem passa e brigando com a mulher. Ô! velha ruim! Sua esposa responde: e você é bem bonzinho, cabra baixo sem-futuro. Naquele dia está completando noventa e quatro anos, e Marçal veio trazer o bolo e salgadinhos encomendados pelos filhos e netos. Para que gastar dinheiro com isso? Não serve para nada! Vovô, é o seu aniversário. Besteira, isso é coisa de quem não tem o que fazer. 

A neta passou no concurso e está comemorando as duas datas. Está na hora de tomar o banho seu Martins, diz a cuidadora seguindo o cronograma. Só se você demorar mais tempo lavando minha vantajosa. Eu lavo, bem lavada, vamos! O velho é putanheiro. Só vai para o banho depois que diz uma. Aí atrás não, deixe minha honra em paz. É uma pomadinha, seu Martins, para não assar e evitar que fique doendo. Todos os dias é a mesma luta. 

Já plantaram o capim? Está sendo plantado, pai! Plante por trás do açude. Se plantar dentro é perder tempo. O senhor vai ganhar presente, vovô! Eu gosto de presente, só não gosto é de dar presente. Parabéns pra você... quem é esse povo? São seus filhos e netos, seu Martins. Meus, mesmo não! É tudo ladrão. E eu disse a você que fechasse a porta. 

Olhe aqui vovô, a camisa que eu trouxe para o senhor. Gostou? É bonita! É minha? É, do senhor. Está gostando da festa? Que festa? O seu aniversário. Vai ser quando? Quer comer um bolinho? Acho que vou querer... Peraí pessoal, vovô está querendo escolher o que quer comer. Todos ficam em silêncio. Seu Martins olha meio apreensivo. Diga vovô, o que o senhor quer! PEIDAR, e vocês não estão deixando! 

A bênção tio Martins! Deus te abençoe! Está lhe reconhecendo? Parece com Damião. É o filho dele, Tarcísio. Cadê Toim? Toim foi embora. Diga a ele que volte e venha me tomar a bênção! Toim morreu, tio Martins. Daqui a pouco vai sobrar só eu. Damião, meu irmão, já morreu faz tempo. Também com dois para dar de comer, o cabra morre logo cedo. Você e Toim nunca quiseram limpar mato. O sobrinho, empresário, decente e trabalhador, saí rindo de tio Martins. Sempre teve a língua ferina, comenta com a mulher ao entrar no carro. 

Amanhã vamos para o hospital trocar o marcapasso. Eu mesmo não! Bom-dia, seu Martins, cumprimenta o médico. O senhor está sentindo o quê? Nadinha! Estou bonzinho! Nem sei o que estou fazendo aqui. O seu coração está funcionando apenas com vinte por cento, e o senhor veio fazer os exames para trocar o marcapasso. 

Na viagem de volta ele comenta: ô corja de ladrão. Me virou para um lado e para o outro da cama e não disse nada. O cabra vir de tão longe só para ser revirado em uma cama, é não ter o que fazer. Paguei quinhentos, para nada! Assim o cabra quebra sem ver de quê. Seu Martins é desse jeito, e olhe que hoje ele está de bom humor.


Heraldo Lins Marinho Danas

Natal/RN, 15.03.2022 ─ 09:53



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