terça-feira, 24 de março de 2020

DESEJO ESTAR ENGANADO - Reflexões de um psicólogo em quarentena

O texto abaixo faz parte de um projeto idealizado por Júlio César, psicólogo que consiste em "escrever um texto onde, baseados em nossas experiências de vida, relataremos o que entendemos que irá acontecer após a decretação do final da pandemia." Você que nos lê sinta-se convidado a fazer parte desta ideia. - Gilberto Cardoso dos Santos



DESEJO ESTAR ENGANADO 

Estamos em 24 de março de 2020.

Para mim, hoje é o 8º dia do meu isolamento social.

Nasci no ano de 1958, portanto, tenho algumas experiências nessa vida brasileira, tão cheia de sobressaltos.
Desde a época das minhas primeiras letras, iniciada nos primeiros anos da ditadura militar, o país passou por período de inflação galopante, quando tive que reaprender a tirar três zeros da grafia da nossa moeda.
Passei por mudança do nome da nossa moeda: cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro novamente, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real e real. Chegamos a utilizar, na época do Novo Cruzeiro, os BTN-Bônus do Tesouro Nacional, como indexador do nosso dinheiro. Alguém se lembra disso? Pois é, isso foi em 1.989.
Minha formação universitária aconteceu entre 1986 e 1992, ou seja, no final da ditadura e no início do processo de redemocratização política brasileira. Entretanto, minha vivência na Saúde Pública inicia-se em 1.993 no Ministério da Saúde e a partir de 1994 quando iniciei meus trabalhos em um CAPS- Centro de Atenção Psicossocial).
Especializei-me em Saúde Pública no ano de 1999 e iniciei meu mestrado, também em Saúde Pública no ano de 2001.
Em 1994 a cidade em que vivo estava se recuperando de uma epidemia de cólera e adentrava na epidemia da dengue, que passou da forma clássica para a hemorrágica em pouco tempo. Eu contraí a doença em três oportunidades.
Recentemente, passamos pelas epidemias da Chikungunya e do Zikavírus, que deixaram sequelas até os dias de hoje, embora pouco se fala delas.
Enfim, nossa sociedade passou por grandes turbulências, políticas, econômicas e de saúde (obviamente todas interligadas), nos últimos 60 anos.
Pois bem, hoje enfrentamos uma pandemia do COVID-19, conhecido como Coronavírus, que está paralisando quase todos os países do nosso planeta, fazendo com que as famílias fiquem confinadas em suas casas (pelo menos aqueles que podem se dar a esse luxo), fato esse que, se acontecesse há 25 anos, seria impossível, pois não havia internet, redes sociais, telefones celulares, entregas a domicílio, Netflix, dentre outros meios de comunicação.
As previsões dos especialistas mostram que ainda não chegamos ao pico da epidemia no Brasil, e que os dados apontam para números alarmantes nos próximos 30 ou 60 dias, com milhões de infectados e milhares de mortos.
Pois bem, vamos ao cenário que vislumbro para depois que a última vítima do COVID-19 for enterrada.
  1. Como todas as atividades produtivas estão em ritmo lento ou paralisadas, os detentores do capital acionarão todo seu poder de produção para buscar a recuperação do dinheiro perdido, além de lutarem por políticas que restrinjam os direitos dos trabalhadores ao máximo;
  2. Nossos políticos já descobriram a fragilidade do povo e vão eleger um messias (não confundam com esse Messias que está aí, pois ele é carta fora do baralho) para orientar os rumos da população, legitimando a restrição de direitos sociais, trabalhistas, cíveis etc.;
  3. A recuperação econômica do povo não acontecerá, pois a maioria da população brasileira vive do que ganha e gasta no período de um mês, não tendo condições de investir, portanto, a única batalha a ser vencida será a do emprego que estará disponível com poucas garantias e com redução dos valores anteriores;
  4. A concentração de renda, que já é absurda, se tornará mais visível, pois a classe média perderá seu poder de poupança e de consumo;
  5. A corrupção vai diminuir em número de corruptos, mas vai explodir em valores;
  6. O conhecimento voltará a ser um valor inestimável de poder;
  7. O setor de educação privado crescerá exponencialmente através dos cursos EaD e de faculdades caça níqueis;
  8. O serviço público será esvaziado e as relações de trabalho voltarão à precarização de 60 anos atrás;
  9. Cuba será uma potência em Saúde Pública, mas o capital continuará com os grandes laboratórios farmacêuticos, por razões óbvias e já presentes atualmente;
  10. A maioria das pessoas, em torno de 70% da população mundial, voltará às suas atividades e, em um ano, tudo será vivenciado como se fosse a coisa mais natural do mundo, ao estilo 1984 de Orwell.





Um comentário:

  1. Parabéns, Júlio César. Com este texto vc deu início a uma série de reflexões profundas e necessárias nestes dias de quarentena, que crescerão em importância à medida que nos distanciarmos desse tempo. Nota máxima.

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