o meio de todas as coisas
entre o fim do começo e o começo
do fim toda coisa tem uma massa
inerte feito ponte pela qual
passamos distraídos - ou não:
os astecas sentiam chegar o exato
momento do meio da vida - o meio
do meio da vida, o momento em que
o que já vivemos é exatamente
igual ao que ainda não vivemos
- e nesse momento preciso o mais
comum dos astecas sentia uma súbita
e inexplicável vontade de tomar um trem
mas como ainda não o tinham inventado
ele acabava por entristecer-se.
(daí a tristeza, essa vontade de algo
que ainda não inventaram)
a palavra para que antes fazia as pessoas
pararem agora já não tem acento igual
à palavra para que indica que as pessoas
estão indo para algum lugar geralmente
sem parar isso é um sinal dos tempos
o que antes parava agora não para não
felizes são as pessoas nas fotos
de escola da minha avó
que não sabem ainda
que vão ser avós
e isso se tudo der certo
e elas não morrerem antes
no princípio era o verbo
uma vaga voz sem dono
vagando pela via láctea.
depois veio o sujeito
e junto com ele todos
os erros de concordância.
unha e carne
eram como unha e carne os dois
e como unha e carne partiram-se
em metades injuntáveis ambos
sob o alicate inox e ela
repousa no ladrilho, âmbar:
lua minguante sobre o bidê.
sobre a exaustão das retinas
ja não me diz nada um por do sol em cancun
e um coqueiro em alto-mar já vagou por protetores
de tela demais para me causar qualquer sensação
de bem-estar; os casais parisienses que habitam
calendários já não me dão sequer vontade
de ir a paris assim como não me comovem
mais as crianças de sebastião salgado nem
a menina que foge do ataque do napalm
e que em breve estampará cangas e biquínis;
as imagens estão gastas e não há nenhuma
que erga pontes como a palavra que.
Soneto para construir janelas
para Paulo Henriques Brítto
Erguer antes de tudo uma parede -
a parede no caso é importantíssima,
pois as janelas só existem sobre
paredes, as janelas sobre nada
são também nada e não são sequer vistas.
Em seguida, quebrá-la até fazer
nela um grande buraco, não maior
que a parede, pois precisamos vê-la,
nem menor que seus braços - as janelas
sobre as quais não se pode debruçar
não são janelas, são buracos. Pronto.
Ou quase: agora basta construir
um mundo do outro lado da parede,
para que possas vê-lo, emoldurado.
posto nove e meio
açaí açaí — você conhece o waldo — olha o mate — waldo que waldo — é o melhor musse do rio
de janeiro — agora joga um spray nas minhas costas — conheço um waldo que morreu —
meumusse é o melhor — o waldo não morreu quem morreu foi o walter — foi o waldo — empada
praiana — foi o walter — sabe que — açaí — no fundo — açaí — eu acho que o nome dele era —
olha — waldo mesmo — o mate — porra tu — guaraplus — tacou spray — guaraplus — no meu
olho — o waldo — mate — ele mesmo — então, morreu — olha o mate — para morrer, meu amigo
— mate — basta estar vivo.
Receita para um dálmata
(ou: Soneto branco com bolinhas pretas)
Pegue um papel, ou uma parede, ou algo
que seja quase branco e bem vazio.
Amasse-o até que tome forma
de um animal: focinho, corpo, patas.
Em cada pata ponha muitas unhas
e em sua boca muitos dentes. (Caso
queira, pinte o focinho de qualquer
cor que pareça rosa). Atrás, na bunda,
ponha um fiapo nervoso: será seu
rabo. Pronto. Ou quase: deixe-o lá
fora e espere chover nanquim. Agora
dê grama ao bicho. Se ele rejeitar,
é dálmata. Se comer (e mugir),
é uma vaca que tens. Tente outra vez.
o bairro de botafogo
se fosse um senhor
usaria óculos fundo
de garrafa e daria
bom-dia aos pássaros
cantores que já não
moram na varanda.
ligue os pontos
enquanto você dormia liguei
os pontos sardentos das suas
costas na esperança de que
a caneta esferográfica revelasse
a imagem de algum ser mitológico
de nome proparoxítono o mapa
detalhado de algum tesouro
submerso formasse quem sabe
alguma constelação ruiva oculta
na epiderme e me deparei
com o contorno de um polígono
arbitrário que não me fornecia
metáforas não apontava direções
simplesmente dizia: você está aqui.
difícil ser feliz nas festas de santa
teresa ou sentado nas escadarias
da lapa por melhor que seja
sua companhia é difícil ser
sinceramente feliz na
pizzaria guanabara às
cinco da manhã em
meio a pedaços de
pizza fria e o cigano
igor de chapéu há
lugares em que
você sabe que
não vai ser
feliz mas
vai
teresa ou sentado nas escadarias
da lapa por melhor que seja
sua companhia é difícil ser
sinceramente feliz na
pizzaria guanabara às
cinco da manhã em
meio a pedaços de
pizza fria e o cigano
igor de chapéu há
lugares em que
você sabe que
não vai ser
feliz mas
vai
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