terça-feira, 17 de junho de 2025
ALIANÇA COM PALAVRAS
domingo, 15 de junho de 2025
SOU 100% HUMANO
SOU 100% HUMANO
É preciso enfraquecer esse indomável monstro que destila veneno por onde passa. Fecham-se cadeados, portões, jaulas... mas a boca? Essa entrada sem tranca tornou-me obeso; a saída liberada, odiado. Não tenho capacidade de habitar na mansa sociedade. Exercícios, trabalho, preocupações, perigos... sou um ser necessitado de tudo isso para me manter dentro dos parâmetros normais de aceitabilidade.
Quero brigar com todos. Colocar defeito em tudo. Só eu estou certo. Nunca erro — apenas me engano aqui e acolá.
Não assumo em público, contudo, tenho vícios. Sou doido para envenenar gatos, mas não tenho coragem. Outra deficiência minha: sou covarde, dissimulado. As pessoas acham que sou calmo. Mais violento do que eu, desconheço. Finjo que está tudo bem. Entretanto, enquanto sorrio para alguém, penso em decapitá-lo.
Sou tido como um cidadão de bem. Ah, se eu tivesse poder... Trump seria um aprendiz perto de mim. O ditador da Coreia do Norte estaria no jardim de infância. Como os invejo! Eles têm milhares de soldados ao dispor para dar vazão ao mesmo instinto que habita em mim. Acho que seria tão feliz quanto eles, se tivesse o poder que eles têm. Num estalar de dedos, caças supersônicos, avaliados em milhões, partiriam para destruir uma cabana feita de palha.
Eu faria pior do que o presidente de Israel. Deixaria as crianças palestinas morrerem de fome, só para acabar com o mal pela raiz. Faria fábricas no subsolo, tentando desenvolver a bomba atômica. Depois de prontas, jogaria na floresta Amazônica para exterminar todo tipo de vida. Só assim sobraria ouro para mim.
Esqueci de dizer, mas sou também muito ganancioso. Tudo que vejo, quero comprar — mesmo que seja para depois jogar no lixo. Queria possuir muitas vacas leiteiras. Minha vontade era juntar o leite só para derramá-lo e, assim, fazer o preço subir.
Sou fã daquele filme Meu Malvado Favorito. Assisti a todas as versões. Os minions? Esses já entraram para a história, muito mais aclamados do que São Francisco de Assis. Quem é esse? Fazia o bem. Mentira, diria eu nos alto-falantes. O bem é uma criação cultural para ser bem visto — pelo menos, é o que pratico, e com esse objetivo. Sinto-me mal ao praticá-lo, mas o faço em busca de aceitação social. Jogo para a plateia, com discursos bem articulados e ações plausíveis. Beijo crianças em público... querendo cozinhá-las, em particular.
Estou com saudades de uma guerra mundial. Já faz quase cem anos da última. Está na hora de matarmos o excedente. Daqui a pouco, nem se consegue mais comer caviar.
Eu sou assim, direito.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 15.06.2025 – 06h52min
sexta-feira, 13 de junho de 2025
PACTO COM O TEMPO - Nelson Almeida
PACTO COM O TEMPO
Não uso artifícios no rosto.
Nunca pintei meus cabelos.
Aceito, sem sobressalto,
A passagem dos dias.
As rugas contam histórias,
são páginas vividas na pele.
Não posso negar quem sou:
tenho um pacto com o tempo.
Esse senhor da existência,
soberano e silencioso,
corre — fundamental e livre —,
alheio aos desejos vãos.
Não quero rusgas com o tempo.
Deixo a cor dos meus cabelos
ser o prólogo visível
da história que meu corpo narra.
Nelson Almeida. Natal, 13/06/25. 12:20.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
SUPREMO ANSEIO - Poema de Juciana Soares
SUPREMO ANSEIO (Juciana Soares)
Não quero mais apenas fazer sexo.
Quero viver uma paixão!
Quero beijos famintos!
Quero matar minha vontade de ser devorada
com o mesmo desejo que sinto por ele!
Sinto sede de viver,
de sentir meu corpo molhando,
jorrando, pulsando
tal qual a tempestade de emoções
que sinto quando acordo…
já pensando nele,
na boca dele,
no cheiro dele que ainda não conheço,
na ânsia que tenho de ser dele,
de ter prazer com ele…
no amor que mesmo antes de nascer nele
já percebo em mim…
terça-feira, 10 de junho de 2025
PRODUTO DA INSÔNIA
PRODUTO DA INSÔNIA
Viajando por esse vasto repertório de mentiras, deparei-me com papai Noel conversando com Noé. Um deles dizia que as renas não precisariam embarcar, já que voariam logo que começasse a chover. Saí desse fake apressado para não interferir na história e fui bater direto na Grécia antiga. Lá, procurei por um tal de Sócrates, aquele que diz: "só sei que nada sei". Nada. Ninguém sabia dizer onde ele morava. Ah!, sim, respondeu-me um barbudo. Está sendo inventado por aquele outro barbudo. Ele apontou em direção a um grupo de homens que se coçavam. Quem está inventando Sócrates? Perguntei ao me aproximar. Ele, respondeu o de barba ruiva. Eu não, defendeu-se o morador de teatro, também sem se barbear, e foi logo se retirando como se eu tivesse lepra. Em poucos instantes, o grupo havia se dissipado.
Depois dessa frustração, eu só pensava em ficar nos braços de Salomé, mas não deu. Ela estava ocupada, levando uma cabeça numa bandeja. Para que queres essa cabeça? Não é da sua conta. Logo percebi que bisbilhoteiro não tinha vez no mundo antigo.
Fugi para perto de um monte de gente olhando um doido lavar as mãos. Barrabás, gritou um efeminado, logo eliminado por um Minotauro. Que coisa, pensei. O Minotauro mastigou seu almoço na frente das crianças, porém foi esse o seu erro. Uma delas pegou uma pedra e lascou a cabeça do Minotauro. Aplausos. Qual o seu nome, menino? Quer comprar cocada? Não. Além de matar Minotauro, Teseu também vendia cocada nas sessões de crucificação. Saí apressado para que ele não tivesse tempo para ir pegar uma outra pedra para fazer comigo o mesmo que fez com o Minotauro.
Logo adiante, encontrei uma pedinte. Estava com uma serpente nas mãos. Uma ajuda aqui para essa pobre serpente, pedia ela enquanto comia uma maçã. Cadê seu marido? Aquele sem-vergonha está povoando o mundo. Seu nome é Eva, não é? Pode me chamar de costela, disse ela, puxando a corrente que mantinha Caim sob controle.
Na esquina, dei de cara com um anjo confuso. Procura algo?, pergunte-lhe. O caminho de volta para o Paraíso, disse ele, aflito. Mas acho que Adão trocou as placas. Aproveitou a oportunidade para me oferecer milagres em promoção: compre dois peixes e ganhe cinco pães. Perguntei se aceitava cartão. Só Pix. Tudo bem! Qual é a senha? Céu e Inferno, tudo junto.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 10.06.2025 - 04h31min.
segunda-feira, 9 de junho de 2025
Lançamento de "Famílias do Trairi do Rio Grande do Norte", livro de José Edmilson Felipe
O grande pesquisador e professor da UFRN José Edmilson Felipe da Silva, realizará o lançamento do seu livro nos dias 28 e 29 de junho durante o 2º encontro de Cultura Pop do Trairi. O referido livro registra a história das raízes da região Trairi. O título do Livro será Famílias do Trairi do Rio Grande do Norte: Suas raízes Judia, Indígena e Negra.
Local do evento: Memorial João Pinheiro do Chapado, Rua Professora Palmira Barbosa, 146, bairro Miguel Pereira Maia em Santa Cruz/RN.
Data: 28 e 29 de junho de 2025.
O prédio fica na rua do Hotel Riviera, próximo ao depósito da Maré Mansa
Programação:
sexta-feira, 6 de junho de 2025
O NOSSO FORRÓ - Hélio Crisanto
O NOSSO FORRÓ
Já não se vê nos salões
Nosso forró genuíno
Clamo ao povo nordestino
Honrar nossas tradições.
Não aceite imitações
Ouça Petrúcio e Dió
Flávio lá de Bodocó
Gonzagão e Marinez;
Estão querendo de vez
Sepultar nosso forró.
Escute um xote de pinto
Azulão e mestre Zinho
Santana e Jorge de Altinho,
Não deixe o forro extinto.
Ouça um Côco de Jacinto
Desses que levanta o pó
Escute João Mossoró
Em todo dia do mês;
Estão querendo de vez
Sepultar nosso forró.
Na sua festa junina
Se quiser um clima bom
Convide o mestre Marrom
Com zabumba e concertina.
Pelos salões de Campina
Quero ver um ritmo só
E Deda abrindo o gogó
Cantando com altivez;
Estão querendo de vez
Sepultar nosso forró.
Quero um São João genuíno
Sem sertanejo e axé
Tocando Flavio José
Para o povo nordestino.
Na poeira um dançarino
Dançando qui nem jiló
E o contratante sem dó
Pagando bem os cachês;
Estão querendo de vez
Sepultar nosso forró.
Hélio Crisanto
terça-feira, 3 de junho de 2025
A subjetividade do malandro na Literatura Brasileira e na MPB - Livro de Roberto Gabriel
A figura do malandro é um ícone cultural brasileiro, representando uma subjetividade complexa que transita entre a marginalidade e a resistência. Roberto Gabriel, profundo conhecedor da MPB, a quem já entrevistei neste blog, fez deste tema o cerne de seu doutorado e foi aprovado com louvor. O estudo por ele desenvolvido propõe uma análise dessa figura na literatura brasileira e na música popular brasileira (MPB), explorando como ela reflete e influencia a construção da identidade nacional. - Gilberto Cardoso
Livro: "A subjetividade do malandro na Literatura Brasileira e na MPB". Doutor: Roberto Gabriel Guilherme de Lima.
O primeiro capítulo é uma análise da subjetividade do malandro no livro: Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida.
O segundo capítulo é uma análise da subjetividade do malandro no livro: Macunaíma de Mário de Andrade.
No terceiro capítulo faz-se uma menção à: Música, poesia e canção popular: uma reaproximação de conceitos e um subcapítulo: A poesia na prosa, no poema e na canção popular.
No quarto capítulo fala-se do: "O cuidado de si" e a constituição subjetiva do malandro.
No quinto capítulo:
5.1 O malandro na história oficial e não oficial do Brasil.
5.2 O malandro nas canções de Noel Rosa.
5.3 O malandro nas canções de Chico Buarque de Holanda.
5.4 O malandro no romance buarqueano: "Essa gente".
No sexto capítulo
6.1 Caracterização da pesquisa.
6.2 Sujeitos da pesquisa.
6.3 A Subjetividade do malandro entre alunos.
6.4 A Subjetividade do malandro entre educadores.
Considerações finais
Referências.
O livro foi lançado em Santa Cruz, no espaço do IFRN que leva o nome da mãe do autor, no Auditório Profª. Francisca Ivaita Guilherme de Lima, no dia: 30/05/2025.
Quem quiser saber mais ou se interessar pela obra, que tem 257 páginas e custa 50 reais, entre em contato pelo telefone: (84) 988524277
Abaixo, uma entrevista que fiz com o autor, publicada em 12 de junho de 2011
Gilberto Cardoso: Trace de si um perfil e faça uma minibiografia.
ROBERTO GABRIEL: Nasci em Natal 13/02/1969. Filho de: Roberto Gabriel de Lima e Francisca Ivaita Guilherme de Lima. Sou professor de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino. Tenho mestrado em Literatura Comparada,e especialização em Língua Portuguesa, sou graduado em Letras pela UFRN.
Gilberto: Desde quando surgiu seu interesse pela MPB? Fale-nos do histórico de sua coleção de CDs e discos.
ROBERTO: Desde cedo, fui criado num ambiente musical, sempre ouvíamos canções diariamente. Minha mãe foi quem comprou os primeiros LPs que tinha em minha casa. Ouvi muito Martinho da Vila, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Waldick Soriano, Núbia Lafayete, Ângela Maria, Roberto Carlos, entre outros. A partir daí fui dando continuidade a minha coleção de vinil. Sempre gostei de receber de presente um disco.
Gilberto: O que você classificaria como genuína MPB? Há algo que leva tal nome e que, de fato não o merece?
ROBERTO: Nada nesse mundo é definido como puramente genuíno. Nossa música é altamente mesclada de ritmos e estilos, rotulá-los não é meu papel. Sou apenas uma pessoa que admira essa tão vasta e respeitosa MPB. A MPB compreende um campo muito vasto de estilos musicais.
Gilberto: Não acha impróprio o termo “popular” para esse tipo de música? Por quê?
ROBERTO: Acho mais impróprio o termo música do que o termo popular. Porque música está ligado àquilo que é musical, tipo uma partitura, e não àquilo que é cantado. Eu trocaria o termo música por canção. Porque canção é uma letra escrita para ser cantada dentro de uma melodia. O termo popular surgiu para diferenciar as músicas clássicas (Beethoven, Ravel) das músicas (letras melodiosas) cantadas pelo povo.
Gilberto: Que pensa das ideias de Caetano Veloso a esse respeito?
ROBERTO: O que eu sempre compreendi sobre a Tropicália, movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, é que eles queriam juntar unindo todos os estilos musicais brasileiro. Era este o papel principal da Tropicália.
Gilberto: Caetano gravou sucessos bregas, Maria Bethânia fez o mesmo. Que pensa a respeito?
ROBERTO: Meu caro não existe nada brega na música brasileira, o que existe é um preconceito exacerbado de certas pessoas que não têm conhecimento de causa. Porque a própria palavra já diz: preconceito é um conceito prévio que certas pessoas tiram a respeito de algo que não conhecem.
Gilberto: Quem você classificaria como verdadeiros ícones da MPB?
ROBERTO: Fica difícil porque o Brasil é o país dos grandes compositores, dos grandes cantores e das grandes cantoras. Todos tiveram uma grande contribuição na constituição da nossa música. Falar de alguns e deixar outros de lado, é melhor incluir todos.
Gilberto: Quais seus cantores e compositores preferidos?
ROBERTO: Se eu fosse nomeá-los passariam dos 250, portanto vou falar aqueles pelos quais sou mais apaixonado. Homens: Alceu Valença, Moraes Moreira, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Djavan e Milton Nascimento. Mulheres: Elba Ramalho, Baby do Brasil, Rita Lee, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone, Clara Nunes, Marisa Monte, Elis Regina, Beth Carvalho e Tereza Cristina.
Gilberto: Que voz você classificaria como a melhor e que compositor mais o encanta?
ROBERTO: Melhor voz: Milton Nascimento Melhor compositor: Noel Rosa
Gilberto: Comente a seguinte frase, dita por Reginaldo Rossi : "A diferença entre o brega e o chique só começou a existir depois da década de 60. Quem falasse mal do regime militar era chique".
ROBERTO: O Regime Militar foi um período cruel da nossa história, isso deu margens à muitas canções, mas é claro que todas as canções feitas no Brasil, nessa época, obrigatoriamente, não deveriam ter que se referir a esse período, isso é ilógico. E nem por isso as canções que não se referissem a esse período deveriam ser taxadas de bregas.
Gilberto: A perda da militância política não empobrece a qualidade da Mpb? Não há um excesso de romantismo que poderia ser classificado como fator alienante?
ROBERTO: Não, porque a mesma elite que ouve, digamos as tais canções de protesto, é a mesma que não cumpre o seu papel quando está no poder. Na minha opinião, a sociedade brasileira é a mais hipócrita do mundo, porque para o brasileiro se eu estou bem não me importa o resto. Acredito que as canções de amor deveriam alertar essa sociedade hipócrita para amar mais o seu próximo.
Gilberto: Por que a MPB não cai no gosto do povo brasileiro ? Teria a ver com a música em si ou com o descaso dos meios de comunicação?
ROBERTO: Tudo tem seu tempo, tudo acontece no seu tempo.
Gilberto: Há algo a lamentar em relação a MPB?
ROBERTO: Só tenho a agradecer aos grandes mestres, interpretes e músicos do Brasil, pois é a única coisa levada a sério nesse país.
Gilberto: Nos dias atuais, como está a MPB? Pensa que ela já teve seus dias áureos?
ROBERTO: Sempre está surgindo um grande nome, um exemplo disso é a Escola de Samba PORTELA que tem lançado além dos seus grandes smbistas, uma nova safra de sambistas como Diogo Nogueira, Tereza Cristina, Dorina, Juliana Diniz e Nilze Carvalho que são sambistas Portelenses da nova geração.
Gilberto: Que discos e CDs faltam em sua vasta coleção da MPB? Cite algo raro que você possui?
ROBERTO: o primeiro CD dos Secos e Molhados e um CD do cantor/compositor cubano Pablo Milanês. Faltam muitos CDs para minha coleção, se eu pudesse eu teria todos os CDs lançados no Brasil sem restrição.
Gilberto: Fale um pouco sobre sua tese de mestrado e diga-nos suas palavras finais.
ROBERTO: Minha tese é a respeito das canções de cunho feminino de Chico Buarque porque eu trabalho com essa fronteira do gênero entre o masculino e o feminino.
O que me faz viver ainda, nessa sociedade hipócrita brasileira, é saber que eu tenho muita gente boa para ouvir em casa. Tudo isso me dá um enorme prazer em viver.
terça-feira, 27 de maio de 2025
APOSENTADORIA POR MOTIVOS TECNOLÓGICOS
APOSENTADORIA POR MOTIVOS TECNOLÓGICOS
Coitados dos escritores. Mal começamos a nos adaptar às exigências do mercado moderno e já estamos sendo substituídos pela inteligência artificial. O ofício das palavras, que sempre exigiu alma, tempo e dedicação, agora está sendo invadido por máquinas que aprendem mais rápido do que qualquer ser humano. Os poetas, então, nem se fala. Como escrever versos cheios de emoção e subjetividade quando um programa pode produzir sonetos em segundos?
Foi o ChatGPT, dizem os caçadores de fantasmas modernos. Eles apontam o dedo sempre que leem algo bem escrito, desconfiando da origem das palavras. Desde que essa tecnologia chegou por aqui, não há mais trégua. É como se cada frase precisasse de um selo de autenticidade humana, uma certidão dizendo: isto foi escrito por uma pessoa de carne e osso.
Os plantonistas da escrita vivem me enviando reportagens sobre o tema, como se quisessem me convencer de que minha profissão chegou ao fim. Quase não dá tempo de respirar entre uma notificação e outra. A enxurrada de alertas parece mais um prenúncio do apocalipse criativo. No entanto, o que muitos não entendem é que a ferramenta pode ser aliada, e não inimiga.
Uso o ChatGPT com frequência — não para roubar ideias ou terceirizar pensamentos, mas para revisar meus textos. Um toque aqui, uma sugestão ali, e o texto flui melhor. É como ter um segundo par de olhos, atento aos deslizes que passam despercebidos por quem escreve imerso em sua própria criação.
Um colega escrivão me confessou recentemente: as oitivas dos boletins de ocorrência já estão sendo elaboradas com a ajuda da inteligência artificial. Basta inserir o corpo do B.O., e o ChatGPT se encarrega de formular perguntas objetivas para o investigado. É prático, rápido e, muitas vezes, mais claro do que o raciocínio apressado de alguém em plantão noturno.
A verdade é que a inteligência artificial está em toda parte. Meu primo, por exemplo, me mandou o laudo de uma ressonância magnética da mãe dele. Em poucos minutos, com a ajuda de um modelo de IA, levantei todas as possibilidades de AVC que o exame poderia sugerir. Uma consulta médica rápida e gratuita, embora, é claro, com todas as limitações de quem não é médico.
Apesar do avanço das máquinas, ainda acredito no poder da mente humana. Há coisas que uma IA não pode substituir: o olhar sensível de um escritor, o instinto de um investigador, o cuidado de um filho. Podemos, sim, usar essas ferramentas para sermos mais eficientes, mas não podemos esquecer quem somos e o que nos diferencia.
Portanto, não, não somos coitados. Somos apenas humanos vivendo uma nova fase da história, onde a convivência com a tecnologia nos desafia a sermos mais criativos, mais éticos e mais conscientes. A inteligência artificial está aí, mas o coração que bate por trás das palavras, esse, por enquanto, ainda é insubstituível.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 13h37min.
sábado, 24 de maio de 2025
CAROS CURIOSOS
CAROS CURIOSOS
Um homem vestiu-se e saiu do quarto para pular do quarto andar. Subiu e desceu do parapeito. Não iria se suicidar com aquela vontade de ir ao banheiro. Foi. Sentou-se enquanto seu pensamento visitava o passado. Meditou num assunto seriíssimo: quantas vezes estivera sentado naquela posição de constante espera? Suava, e isso fez soar o alarme intuitivo, botando amebas para fora.
A alegria dele era saber que, dentro de alguns instantes, ficaria livre daquela dor humilhante. Quem sentiria sua falta? Talvez ninguém. O tempo passava, e ele olhava passar, levando junto a mulher que ele queria que visse seu corpo no chão.
Ela tomava aquele caminho todos os dias, e agora sua vingança estaria completa. Não suportava ser chamado de traído por um palhaço de circo. Ela ficou com o palhaço, incentivada pela amiga que também saiu ganhando na olimpíada dos três.
Parou de suar. Uma fraqueza tomou conta até de seu pensamento. Pensava em câmera lenta. Viu o chão esticar, levando com ele o papel higiênico. Tudo ficou longe. A toalha era apenas um lenço distante de seu alcance. Uma mulher surgiu, toda de preto. Era sua mãe — deu para reconhecê-la pela lata na cabeça. Ela dizia: venha, meu filho, já chega de sofrimento. Você só serve para votar em quem lhe escraviza.
Lá vem essa tendência política que me acompanha, pensou o homem nu. Suas calças estavam longe do campo visual. A cueca desbotada reclamava que seria horrível para as peritas vê-lo de cueca velha. Ah, sim, vou trocá-la. O tempo parou de passar. Os ponteiros do relógio estabilizaram-se, assim como a água da torneira com a qual lavava as mãos. Para que lavar as mãos antes de morrer?
Cambaleando, saiu do ar por alguns instantes, batendo com a cabeça na quina do piano. Algumas notas saltaram para ouvidos vizinhos. Olha o barulho aí!, gritou um palhaço sem pintura. Era outro daqueles que ele odiava , afinal, ódio era o que não lhe faltava. Sentia ódio até de si mesmo, da sua covardia, da falta de inteligência e memória. Nasceu sem esses atributos, motivo maior das suas invejas. Mas agora, sim, iria se igualar a Newton, Leonardo e Einstein, no quesito: defunto bom é defunto longe da vista dos vivos.
Amava todos os pensamentos profundos, desde que longe dos seus pensadores. Para ele, a vida era uma ilha cercada de tubarões sugadores de suas ideias.
Vestiu sua única calça, com bolso, para guardar a carta de despedida que carregava consigo, caso decidisse se interromper longe de casa. A carta dizia assim: caros curiosos...
Cambaleou até a varanda. Sentou-se agora no chão frio da varanda. A dor real encontrou a dor existencial, e fizeram uma trégua temporária. Estava cansado. Cansado de se odiar, de lembrar de todos os aniversários que passou sozinho, de todas as vezes que comprou flores que murcharam antes de serem entregues.
Lembrou-se do palhaço. Da mulher. Da amiga. Dos espetáculos de traições que ainda ecoavam na mente.
Uma brisa gelada soprou da rua, fazendo a carta balançar no bolso. Era um lembrete: caros curiosos... Talvez devesse rasgá-la, ou queimá-la. Mas não tinha fósforos, nem vontade.
Deitou-se ali mesmo, na varanda, como quem se rende. E foi então que teve um estalo. Lembrou-se de que havia leite na geladeira. E se estragasse? Seria um desperdício. Levantou-se com esforço, como quem ressuscita pela necessidade. Talvez amanhã morresse. Ou depois. Mas hoje ainda tinha leite.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 23.05.2025 - 15h57min.
quarta-feira, 21 de maio de 2025
QUE EU ME VÁ ANTES DELES (Nelson Almeida)
QUE EU ME VÁ ANTES DELES
Eu só peço a Deus — e peço com a humildade de quem tudo teme — que me leve antes dos meus filhos. Não por covardia, mas por obediência ao curso natural da vida.
Quando nascem, eles nada sabem de nós. Somos, para eles, como árvores antigas, plantadas antes do tempo da memória — uns mais frondosos, outros mais retorcidos; uns de sombra larga, outros de tronco ressequido. Eles se habituam à nossa presença como se a terra sempre nos tivesse suportado ali.
E um dia, talvez, decidam buscar outra sombra, outro chão. Partem. E, mesmo assim, quando morremos, choram. Sofrem. Mas compreendem. Porque é da ordem do mundo que os galhos velhos caiam primeiro, que as raízes antigas deem lugar às novas mudas.
Quando os filhos chegam, são sementes que plantamos com mãos trêmulas de esperança. Vemos brotar a vida frágil e cuidamos com zelo, como quem protege um sonho do vento. E, ao crescerem, esperamos por suas sombras, por seus frutos. Sonhamos vê-los florescer quando já estivermos cansados de florir. E, nesse processo, algo misterioso acontece conosco. Pois quando os filhos nascem, já existimos com nossos medos, nossos vícios, nossos erros.
Ainda assim, nos olham com brilho nos olhos, com orgulho, com amor. Esperam que sejamos bons. Dependem da nossa força, da nossa seriedade, da nossa sobriedade. Eles mudam a gente. Nos moldam em silêncio, como a chuva transforma a pedra — sem pressa, sem alarde.
Eles são o verde que se espalha pelo solo árido da nossa existência. São eles que nos regam de sentido, que nos devolvem o riso, que nos sustentam quando a alma já não encontra onde firmar os pés. São o que temos de mais belo, mais puro, mais vivo.
Mas, quando um filho parte antes do pai — ah, Deus — tudo se desfaz. É como se o campo se tornasse deserto de súbito, como se a primavera morresse antes de abrir os olhos, como se a árvore, ainda viva, visse o seu fruto apodrecer no galho.
Por isso, Deus, se houver justiça nos desígnios do céu, permita-me ser árvore velha num campo florido, e não árvore madura num jardim que jamais deu flor.
Não me deixe assistir à morte daquilo que é continuação de mim. Leve-me antes — antes que as raízes da minha alma se rasguem sem remendo, antes que o mundo perca o seu eixo, antes que eu perca o nome de pai.
Nelson Almeida. Natal, 21/05/25. 04:23.
sexta-feira, 16 de maio de 2025
FÉ PÓS-MODERNA
FÉ PÓS-MODERNA
O sono está chegando sem que eu precise comprá-lo na farmácia. Já são tantas horas da madrugada, e eu aqui, esperando-o, pronto para aceitar sua ação sem questionar. Lá fora, o silêncio é quebrado por um ronco de motor transportando alguém sentado; aqui dentro, eu me ocupo com as dúvidas existenciais estimuladas pelas notícias da nossa espécie: uns com gripe forte, outras com bebês reborn, brincando de boneca depois dos cinquenta.
Assustei-me ao ver a perfeição dos bonecos, acalentados como se crianças fossem. Pesquisei os pontos de vista de ambos os lados e cheguei à conclusão de que os pets agora irão perder espaço para esse mascote de estimação que não suja. São inofensivos, mas têm um alto grau terapêutico.
A crise de ansiedade agora conta com esse remédio. Que bonito é ver pessoas neurastênicas amaciadas pelos bonecos. Essa tendência milenar está tomando um novo patamar diante do assemelhamento com seres pensantes. Muita gente acha essa nova moda um absurdo, mas será apenas questão de tempo até nos adaptarmos — assim como nos adaptamos à adoração de imagens gigantescas no alto de morros. A Esfinge de Gizé é um exemplo clássico dessa infantilidade. Qual é a diferença entre uma imagem idolatrada por muitos e outra endeusada de forma particular? Os bebês reborn estão no mesmo patamar — ou estou enganado? Não se pode ser hipócrita a ponto de diferenciá-los. Cães são levados para passear no shopping enquanto parentes apodrecem num quarto fedendo a urina. Mas isso pode, ou seja, pode tudo — inclusive adorar bonecos.
Agora, mais leis serão criadas para proteger os bebês reborn, como já existem contra a discriminação de objetos usados em práticas religiosas. É crime atentar contra sentimentos religiosos, e, daqui a pouco, será crime jogar um boneco no lixo.
Dias desses, visitei uma tia que recolhe imagens religiosas jogadas fora por ex-católicos. Depois que esses cristãos transferem o dízimo do padre para o pastor, a primeira coisa que fazem é descartar os personagens do oratório. “Os bichinhos não fazem mal a ninguém”, dizia titia, olhando para a coleção que mantém nas prateleiras.
No Rio de Janeiro — cidade que ainda dita nossa cultura —, a Câmara Municipal aprovou um projeto que institui o Dia da Cegonha Reborn no calendário oficial da cidade. A coisa é séria, tão séria que muitos advogados estão se especializando para defender com quem fica a guarda desses bonecos em uma possível separação judicial.
Recentemente, fui convidado para ser padrinho do casamento do meu amigo com Cleópatra — não a rainha do Egito, mas sua boneca inflável. Confesso que fiquei honrado, embora um pouco inseguro sobre qual traje seria adequado: terno, fantasia de faraó ou capa de sanidade.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 16.05.2025 – 02h53min.
terça-feira, 13 de maio de 2025
FUMAÇA FILOSÓFICA
FUMAÇA FILOSÓFICA
Ontem, viajei pelo universo. O motivo da viagem foi que um amigo me pediu notícias dos pais — mortos há mais de dez anos. Saí em busca dos velhos por esse universo sem fim, como um radar à procura de alvos. Percorri léguas e mais léguas, certo de que logo os encontraria. No meio do nada, estavam os dois ao lado de uma fogueira.
Estacionei. Desci do sono, e eles permaneceram olhando o fogo. Naquele momento, percebi que o divertimento deles era aquele. Estavam em transe, como o viciado em vídeos olhando para a tela. Aproximei-me. Tentei contato, mas não houve manifestação cordial, até que ouvi um: sente-se. Sentei-me, e também fui levado a olhar o crepitar das almas penadas, assando sem gritos ou murmúrios.
Passei momentos observando como é a vida na morte, pois nada havia para fazer de melhor. Nem senti vontade de perguntar como estavam. Eles estavam, e pronto. Deu para perceber: estavam totalmente satisfeitos com a morte que levavam.
Não havia chão como o conhecemos. Tudo estava fixado no vácuo. O que chamamos de tudo, na verdade, era nada. Só havia eles, eu, a fogueira e o resto traduzido em infinito. Dentro do fogo, sim, existia uma verdadeira cidade: pessoas olhando a hora sem tirar os olhos para outra serventia. A hora estava fazendo hora naquela cidade de desapressados. Nem o vento tinha pressa. Chegava em formato de brisa. Perguntei-me se aquilo era a alma do furacão, mas pouco interessava. O conhecimento sobre isso ou aquilo também havia morrido.
Na cidade dos mortos, o divertimento era contar piadas envolvendo pressa. Uma piada durava muito. Até dizer “vou contar” já era motivo de boas gargalhadas. Contar pra quê?, perguntavam-se uns aos outros. Ele quer contar uma piada kkkkkkkk... Ninguém estava interessado em chegar ao fim de alguma coisa, pois, pelo que entendi, eles eram a própria finalização de tudo que achamos que existe.
Riam do tempo que perderam acreditando que tinham uma missão na Terra. Essa era a piada mais clássica vivenciada por todos. Lembram-se dos prazos a serem cumpridos? Nesse momento, quem passou correndo foi o atraso, acompanhado pela tradição e pelos bons costumes. Lá, eles têm formato de heresia, se é que me entendem. Eu poderia descrever como se apresenta a heresia, mas, como fazem os bem resolvidos: pra quê eu explicar?
Fiquei um montão de vezes olhando ao redor. Falei "vezes" no lugar de "tempo" porque lá se mede por quantidade de vezes que se faz algo. O tempo vive aposentado por não ter serventia; por isso, a medida é: as vezes — sem crase mesmo.
Falei com um escritor que tentava concluir um livro. Deixe ele, disseram-me os pais. Ele chegou há poucas vezes, e é necessário muitas vezes para que ele se conscientize de que esse vício de escrever só atrapalhará sua morte. Jamais ele ficará sem vezes se persistir nesse trabalho. Cada vez que tentar fazer algo, mais vezes serão criadas.
Logo depois, um coro de poetas começou a declamar versos invertidos, começando pelo ponto final e terminando com a dúvida. Ninguém pediu explicação. Declame mais!, diziam os desocupados. Vocês entenderam?, perguntavam os poetas, aflitos com tanta cara de paisagem. Pouco importa a mensagem, respondiam os ouvintes. O que importa é o moído.
Despedi-me de todos, e a pergunta que fizeram foi: quando você quer morrer?
Como assim?, indaguei.
É que só percebemos que a morte depende da vontade de cada um, quando morremos.
Pedi explicações e me falaram que cada pessoa começa a planejar a morte quando se dá conta dos cabelos brancos, as rugas, as dores por toda a alma e corpo, e é aí que se opta pelo paraíso de viver sem pressa.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 13.05.2025 — 09h03min.
domingo, 11 de maio de 2025
sábado, 10 de maio de 2025
TRIBUTO AO BOI DE REIS E UM PRESENTE PARA VOCÊ - Gilberto Cardoso dos Santos
Apresentação do Catálogo: Um Tributo ao Boi de Reis e ao Legado Cultural de Santa Cruz
Tive a honrosa satisfação de participar da produção do CATÁLOGO BIOGRÁFICO, MUSICAL E ARTÍSTICO DO GRUPO DE DAMAS DE REIS DE BAILE, ilustrado e diagramado por Débora Andrade, coeditado e prefaciado por mim, e produzido em parceria com a Editora Ixtlan. Esta obra é mais que um registro artístico: é um marco para a história cultural do Rio Grande do Norte.
O livro se encontra gratuitamente à disposição dos leitores deste blog na barra lateral esquerda e no link
https://drive.google.com/file/d/1uHO86Y2XzuyJFJAB5kgLw4A9JCDzO3ux/view
Este trabalho ressalta a grandiosidade do Boi de Reis – Damas de Reis de Baile, manifestação cultural de inestimável valor, sob a liderança do Mestre Geraldo Lourenço, um dos principais ícones da tradição em Santa Cruz e região. Por meio das páginas deste catálogo, temos acesso ao trabalho dedicado do maestro Crisanto Dantas, que seguiu os passos do pesquisador Deífilo Gurgel, dando continuidade a uma trajetória de estudo e preservação do folclore potiguar.
Deífilo Gurgel, ao explicar sua paixão pelo folclore, dizia:
Essa mesma paixão transparece no trabalho de Crisanto Dantas e no legado vivo de Geraldo Lourenço, que, como mestre do Boi de Reis e bonequeiro, perpetua essa arte com entusiasmo, atraindo novas gerações para dar continuidade a essa rica tradição.
É, portanto, com profundo reconhecimento que saudamos esses dois mestres:
Crisanto Dantas, criador do projeto e autor do catálogo.
Geraldo Lourenço, poeta, ator, dançarino habilidoso, mestre do João Redondo e entusiasmado defensor da cultura popular.
Que ambos continuem a brilhar por muitos anos, inspirando futuras gerações e enriquecendo nosso patrimônio imaterial. Este catálogo, fruto de trabalho coletivo e do olhar atento de seus idealizadores, é uma celebração desse legado e uma contribuição valiosa à memória cultural do Rio Grande do Norte.
Gilberto Cardoso dos Santos
(gcarsantos; gmail, Facebook e Instagram. Fone: 84 999017248)
sexta-feira, 9 de maio de 2025
ESTADO TERMINAL DA INSPIRAÇÃO
ESTADO TERMINAL DA INSPIRAÇÃO
Lá vêm, novamente, as palavras, pedindo para serem escritas, e eu, por escravo que sou, obedeço-as. Pergunto-me se já não virou vício essa relação entre nós, mas como não tenho vocação para ser viciado em coisa alguma, respondo-me que apenas é um passatempo. Logo estarei com abuso de registrá-las e consciente que pagarei alto preço por me tornar alforriado.
Sento-me na escrivaninha, querendo apagar o que passei horas lapidando. Ah! meu santo verbo. Ajude-me a ficar longe desses substantivos, peço aos prantos diante do teclado que insiste em piscar. Coloco a mão na cabeça, não estou bem.
Pulo fora da cadeira e venho deitar-me. Aqui tem outro teclado portátil fechado por minha vontade. Neste momento, até o barulho das ondas, quebrando na recém-engorda, causam-me mal-estar.
O mundo das cores sumiu. Será que estou daltônico? Não, o daltonismo passou longe do óvulo. Por pura escolha, o teto é branco, paredes, piso, até o sangue se tornou branco, assim como deu branco no jogo das lembranças.
Saio à janela. Uma jovem corada contrasta com a palidez da avó, passeando juntas as vejo do alto do prédio. Daqui a setenta anos a menina será conduzida por outra menina no ciclo viciante da descendência, e eu estarei no buraco de minhoca cumprindo com minha evolução de húmus. Pisado pela neta da neta, grudarei em suas sapatilhas de bailarina para ouvir aplausos na triste ilusão que a mim são dirigidos.
Volto à realidade despertado pelo barulho do liquidificador. Na cozinha, alguém prepara o almoço. Todos os dias, bilhões de pessoas acionam liquidificadores com o único propósito de causar erupções vulcânicas. A terra não pode mais dormir em paz. Quando será que esses insetos, em formato de humanos, me deixarão em paz, pensa o planeta nas suas mais abismais temperaturas.
Você nem comeu a pêra que deixei, escuto a voz do além. É que não tive tempo de ingeri-la, respondo para a boca da noite que chegou mais cedo só para reclamar. O dia passa, a noite se arrasta e na madrugada fui acordado por um rinoceronte de óculos escuros, sussurrando a equação de Bháskara ao pé da minha cama. Pedi silêncio, mas ele apenas me entregou um recibo de aluguel do meu próprio juízo, vencido desde o século passado. Tentei pagar com lágrimas, mas a máquina de cartão exigia risadas sinceras - coisa em falta no estoque do meu peito.
Então decidi fugir de mim, das palavras, indo parar no supermercado, acreditando que a realidade morava entre os pepinos. Lá, um abacate me encarou com desconfiança e uma cebola começou a chorar, sensibilizada com meu drama literário. Tentei conversar com o caixa, mas ele só respondia em códigos de barras.
Dei meia-volta e encontrei um carteiro morto com um bilhete preso ao peito: Última entrega, suas expectativas. Não me surpreendi. Abri a porta do apartamento com cuidado para não acordar os traumas, que dormiam empilhados no sofá. Sentei à mesa com a serenidade de quem toma chá com veneno e discute filosofia. Liguei a televisão: um noticiário anunciava o fim do mundo pela centésima vez, mas só após o intervalo. Aproveitei o tempo para preparar uma sopa com as últimas esperanças que restavam na geladeira — estavam vencidas, claro, mas ainda deram um bom sabor.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 08.05.2025 - 14h25min.