sábado, 8 de novembro de 2025

HÉLIO CRISANTO, O LAVRADOR DE RIMAS





HÉLIO CRISANTO, O LAVRADOR DE RIMAS 

(Gilberto Cardoso dos Santos)

 

Hélio é um lavrador de rimas

De versos, agricultor

Poemas de sua lavra

Têm do Nordeste o sabor

Graças a forças do além

Produz só flores do bem

E traz do verde o vigor.

 

Hélio é um lavrador de rimas

No inverno e na sequidão

Espera a bênção do céu

As chuvas da inspiração

A planta não morre à míngua

E Deus põe na sua língua

Os encantos do sertão.

 

Hélio é um lavrador de rimas

Sertanejo abençoado

Na moldura da caatinga

Cresceu sempre fascinado

Com o poder da natureza

Fonte de toda riqueza

Que brota do seu roçado.

 

Hélio, o lavrador de rimas

Boas palavras, semeia

Sua colheita é orgânica

Nenhum veneno a permeia.

Com seus versos e repentes,

Alimenta nossas mentes

E aos amigos presenteia.

 

Todo sucesso desejo

A tão nobre lavrador

Cujas glosas e cordéis

Contêm tão rico teor

Rima, métrica e oração

Dignas de apreciação

Repletas de bom humor!

 

Gilberto Cardoso dos Santos

 


quarta-feira, 5 de novembro de 2025

FICÇÃO E REALIDADE

 




FICÇÃO E REALIDADE


Numa manhã de outubro, ele começou a desvendar os segredos contidos no livro Kafka à Beira-Mar. Seriam 448 páginas que pretendia ler em poucas horas, para se envaidecer nas palestras que fazia. Um barulho a mais ou um grau a menos poderia atrapalhar sua concentração.


Abriu o computador, e lá estava a fera esperando-o. Mas, em vez de começar a leitura, seu cérebro lhe apresentou a imagem de um pássaro que matava, a bicadas, uma cobra sem veneno. Essa imagem, vista há pouco nas redes sociais, o levou a sentir empatia pela vítima quando ela foi engolida. Ninguém foi ajudá-la — assim como o leitor, desesperado em cumprir o prazo da leitura, também não podia contar com outra pessoa para auxiliá-lo. Olhou para a claridade do sol nascente refletida no porcelanato da parede, no momento em que reafirmava para si que a leitura é um ato solitário — e só quem a executa pode dizer se a experiência está sendo boa ou não.


Procura se distrair, lembrando-se de coisas sem nenhuma relação com o que está fazendo, tentando ganhar tempo para imaginar o que encontrará no romance. Essa forma de dar saltos no pensamento é como sua mente funciona para interiorizar a importância do que está por vir.


Volta para o computador à sua frente. Aumenta o zoom e encontra o prólogo: “Um menino chamado Corvo...”. Eis o início do livro de Haruki Murakami.


Levanta-se da cadeira, mexe no fogão, come o muito do pouco que resta de um prato, coloca roupa para lavar e volta para a tela. Antes de continuar, trava um diálogo com o comprador do teclado musical:


— Oi! Esse item ainda está disponível?

— Sim.

— Faz 250 à vista?

— Vou analisar sua proposta e, no próximo mês, lhe digo alguma coisa.

— Aí já tenho comprado outro.

— Espere novembro.

— Por quê?

— Porque é depois de outubro.

— Muda o quê?

— Muda do mês dez para o mês onze.

— Kkkkkkk...


O pretenso comprador desistiu, rindo.

Quando tem algum objeto sobrando, ele o expõe à venda apenas para se divertir com os regateadores.


Finalmente, iniciou a leitura:

— Dinheiro, então, deixou de ser um problema? — disse o menino chamado Corvo.


Ele sabe que essa atividade de leitor de romances demanda tempo e paciência. Não adianta ler apressado, tentando ser rápido como se estivesse fabricando biscoitos. O final sempre termina com as mesmas letras; portanto, degustar é a melhor estratégia.


Na manhã seguinte, logo cedo, lembra-se do livro. O planejamento de terminar em poucas horas passa para poucas semanas. Não vai mudar o mundo se nunca concluir a leitura e, se por acaso morrer durante essa façanha, as pessoas não darão pela sua falta. Por isso, paciência.


Faz um chá para a mulher que está mal, orientado pela inteligência artificial de que o de camomila é ótimo para dor na barriga. Hoje em dia, a IA fornece a dieta ideal para quem apresenta sintomas atípicos. Daqui a pouco, os médicos irão apenas jogar cartas enquanto esperam uma vítima de acidente, pois, para doenças simples, basta a IA.


Pula de três em três páginas para treinar a mente a imaginar o que não é lido — tentando encontrar o menino chamado Corvo, que tem para ele, àquela altura, um significado ainda desconhecido no romance.


Gostaria de ser viciado em livros a ponto de colocar, em frente à privada, uma prateleira cheia deles — mas o esporte ocupa o primeiro lugar. Sai para o jogo de tênis e esquece a história do jovem que resolveu fugir de casa, roteirizada na presente obra. Na disputa do jogo, corre, irrita-se, sua bastante e volta para casa com o gosto de vencedor misturado ao que a mulher preparou para o jantar.


Na segunda-feira, ao ler que há um relógio afixado na parede, lembra-se de um relojoeiro que falava sobre um veículo que havia possuído décadas antes. Aquele diálogo parecia não empolgar o neto de dez anos, que disse:

— Vovô só fala nessa Rural.


Percebe que é impossível ler algo sem trazer a própria vivência transformada em experiência para acompanhá-lo.


Retorna para antes dos pulos mentais e pega emprestada uma frase que cabe direitinho na sua realidade: “E o tempo vai passando com lentidão exagerada.” É, realmente, naquela manhã nublada, só quem tem pressa é seu estômago ansioso para provar as duas laranjas escolhidas para a quebra do jejum intermitente. Soube que, quando se está com apetite exagerado, o organismo busca energia na gordura acumulada, fazendo uma varredura nas células velhas e doentes, que são primeiramente consumidas — sem que haja possibilidade de se transformarem em cancerígenas. Não sabe se isso é verdade, mas prefere acreditar que sim; é o motivo maior de só se alimentar duas vezes ao dia, e fica refletindo sobre isso, enquanto espera a vontade para prosseguir a leitura.


Nessa hora, vira a página e se depara com o Capítulo 6. Mais uma vez, divaga sobre a própria afirmação de que está perdendo o gosto por filmes. Fica absorto nas lembranças de quanto gostava de teatro. O mesmo processo repetitivo está acontecendo em relação à sétima arte, e decide que é hora de ficar apenas com as leituras.


É despertado pelo blin-blon da campainha avisando-o de que a filha chegou do treino. Abre a porta. Ela entra. Ele sai com um saco de lixo, silenciosamente, para não despertar a curiosidade da vizinha, que se mantém entrincheirada nas fofocas.


O dia transcorre sem que se apegue a qualquer ideia fixa. Tem medo de pensar demais sobre um só assunto e transformar o pensamento em algo doentio. Um dos exemplos é que prefere fechar os olhos no momento em que está tocando teclado — exatamente para que o cérebro comande os dedos em direção aos sons pensados, desligando-se totalmente do mundo material. Ouviu falar da memória muscular e recorre à imagem de Bruce Lee, preparando o corpo para reagir sem pensar. Deve ser isso que faz um músico conversar e tocar ao mesmo tempo.


Aplaude a desenvoltura de Haruki Murakami, mas percebe que o autor volta a falar de poços, e uma das personagens diz, ao convidar Kafka para sua cama, que está com um namorado e jamais fará sexo com outro, pois é muito rígida quanto a isso. 


Bah! Essas repetições lhe causam enjoo, pois percebe que cada autor tem um modus operandi que faz questão de deixar em cada obra — como se fosse uma antena que personaliza a escrita — do mesmo jeito que, nos filmes, são reproduzidas explosões no mesmo padrão. Os diálogos nas películas também seguem uma tolice sem precedentes: quando um personagem diz “eu te amo”, o outro já está pronto para repetir “eu também te amo”. Parece que existe um cardápio de sons e um modo automático de os personagens se comportarem em cena. 


Ele para num ponto final de capítulo. Observa-o como se fosse uma ilha de descanso. Seu corpo relaxa juntamente com a calmaria do cérebro. Não vê motivo para demorar-se naquele ponto; sua mente apenas estaciona e fica sem expectativas quanto a continuar ou fechar a tela. Resolve fazer o mesmo diante de uma vírgula e, depois, de um ponto de interrogação. Os diálogos permanecem por mais tempo em sua mente quando presta bastante atenção nesses recursos gráficos. Compara o ponto de interrogação a sobrancelhas arqueadas; a vírgula, a um buraco na calçada; e o ponto final, a uma mesa de confraternização entre autor e leitor.


Almoça um prato de pedreiro e se deita. Dormiu sem sonhar e acordou avaliando que não existe dinheiro que pague a liberdade de dormir em pleno meio-dia de uma quarta-feira de expediente. Fica no ócio criativo e descarta a ideia de esconder a roupa esfarrapada da mãe para evitar que ela saia de casa parecendo uma mendiga com mal de Alzheimer. Lembra-se de uma anciã que vivia rodeada de lixo e ratos. Solteirona, morreu depois que um vizinho retirou um caminhão de trastes que ela acumulava, acreditando ser normal guardar o que não tinha utilidade. Faz essas peripécias imaginativas para se convencer de que, por mais que se dedique à leitura, há, sim, uma vida paralela acontecendo ao ato de ler.


Enquanto folga da leitura, no mundo cão, centenas de pessoas continuam morrendo em confrontos armados em um único dia. Bandidos conseguiram abater quatro policiais em troca de centenas deles, mas isso não é problema, já que a máquina de fazer criaturas continua gerando outros substitutos na mesma data em que esses saíram de circulação. 


O impulso que faz novas gerações surgirem como gafanhotos em plantações de trigo é  comandado pelo prazer. Uma vaga é aberta, e outro assume o papel sem constrangimento. Há vagas para todos quando o corpo amadurece e exige a gestação sem muito critério; afinal, em tempos de guerra há escassez de tudo, inclusive de reprodutores. A vontade de se multiplicar faz os genes aprisionarem seus portadores a ponto de o racional ser deixado de lado e, assim, mais e mais confrontos serem travados, com zero de preocupação quanto a possíveis baixas de ambos os lados. Lembra-se das arenas romanas: os governantes continuam a dar pão e circo para a plebe que aplaude esses combates.


Sai da rotina de morte e nascimento para pesquisar sobre as sonatas de Schubert, tão discutidas pelos personagens Oshima e Kafka Tamura. Escuta um pouco e logo tem a ideia de procurar um armazém que vende panelas. Passa o dia inteiro escolhendo vasilhas de acordo com o som que emitem ao serem batidas com a unha. Traz para sua cabana e as arruma embaixo do telhado do alpendre. Espera um dia, dois, até que começa a chover. As bicas pingando no dorso das vasilhas produzem uma inédita sonata, imitando as de Schubert ao piano. Nos dias de chuva, ele fica à espera de descobrir qual música nova será tocada nas panelas que mudaram de posição.


Ah, como seria bom se a vida dele se resumisse a ouvir sonatas tocadas pela natureza! Mas recebe a notícia de que sua mãe ficou cega de um olho.

— Mas como? Será que não havia percebido? — pensa.

O irmão envia um vídeo explicando o que são drusas. Ah, ainda bem que é só o comprometimento da visão central. A visão periférica fica preservada, segundo o vídeo que ele mostra à mãe para deixá-la mais tranquila.


Durante a leitura em que o personagem Nakata fala com gatos, ele encontra a frase: “Ela arrepanha a barra do vestido azul” — e corre para pesquisar o significado de “arrepanha”, do mesmo jeito que fizera quando o amigo gaúcho disse “pilho” durante um jogo de xadrez entre os dois.


Volta para casa satisfeito por ter conseguido um xeque-mate no embate travado com um professor universitário. Logo ele, que se mantém longe do trabalho formal, derrotar alguém que se envaidece por ter decorado centenas de senhas é uma proeza de grande valor.


Após degustar o peixe deixado do almoço, recebe uma mensagem com o pedido de revanche. Sorri de leve e comenta sobre o gaúcho que espatifou o tabuleiro por não saber perder. Confirma que, na próxima semana, estará disposto a mais uma partida e segue com amenidades no colo da amada.


Acorda no meio da noite ao receber o chamado do romance para continuar a leitura. O texto ganhou vida e, embora seja apenas um amontoado de palavras, continua influenciando seu dia a dia. Resta-lhe concordar em levantar-se da cama, acender a luz do escritório e embrenhar-se na mata ficcional. Ler ainda mantém sua importância, mas ele desconfia que, se fosse bilionário, talvez prestasse mais atenção às beldades contratadas para servi-lo do que à leitura.


Imagina poder entrar no livro e conhecer a personagem — moça de aluguel — que precisa fazer o que faz para pagar a faculdade de Filosofia. Na cama, ela recorre ao pensamento de Hegel para dizer, enquanto acaricia: “Para mim, eu sou o si e você é o objeto. Para você, é naturalmente o contrário: você é o si e eu sou o objeto. Neste momento, estamos realizando uma permuta entre o si e o objeto e, assim, estabelecendo a consciência-de-si.” Só isso já compensou a empreitada, pensa ele, protegido por um blusão de frio e por portas e janelas cerradas.


Dá uma pausa para refletir sobre o diálogo real que teve antes de dormir:

— Só sendo muito idiota para manter uma catacumba limpa — dizia ele ao telefone com uma parenta que pagava alguém para realizar essa tarefa.

— É uma tradição — ela respondeu.

— É uma vaidade besta — refutou ele, após ouvi-la. — Cemitério é igual a lixão; a diferença é que, no lixão, há sacos expostos ao sol, enquanto, no cemitério, os sacos são enterrados.


Ficou ouvindo a oposição da esposa, convicta de que o cemitério é um lugar especial...

— Especial para quê? — pensou. — Para que o consumismo continue explorando a ingenuidade dos vivos?

Defendeu sua ideia, dizendo que as pessoas adoram ser enganadas por aqueles que usam púlpitos, crucifixos etc.

— Será que essa trava nunca será retirada? — encerrou o diálogo sem se alterar, consciente de ser voto vencido numa sociedade que acredita no inacreditável.


A curiosidade o faz pular para o último capítulo e se admirar ao ler: “Muitas vezes, o ser humano é determinado pelo ambiente em que nasce e cresce. A topografia, a temperatura e os ventos da região onde um homem nasce podem influir em seu modo de pensar e sentir.” Lembra-se de ter ouvido algo semelhante de um conhecido que morou na floresta. Ele afirmava que a natureza exuberante o fazia pensar sempre de forma grandiosa. Então, perguntou-se se não seria esse o motivo de os muçulmanos cobrirem suas mulheres com burcas. Será que é para inibir pensamentos maliciosos dos concorrentes?


Mais um dia ensolarado o encontra na tarefa de chegar ao final do livro. O diálogo entre Kafka e os dois soldados desertores o faz imaginar que pensar em matar gente é uma criação cultural. Ninguém nasce querendo exterminar ninguém — nem matar, nem morrer —, mas a vontade de possuir algo direciona o querer maldoso para eliminar quem tenta impedir conquistas egoístas. Esses pensamentos, com certeza, são gerados e estimulados no seio de uma sociedade anticomunitária.


Quem não tem paciência para ir aos poucos conquistando recorre às armas, pois elas parecem ser mais eficientes do que vinte anos de estudo. Jovem e temido — eis o sucesso, sem precisar perder tempo construindo lembranças ou esquentando cadeira em bibliotecas.


"O que realmente importa na vida das pessoas talvez seja a maneira como elas morrem...” Essa dúvida do personagem Hoshino o faz parar um pouco para pensar que a morte é um pacto para pôr fim ao próprio sofrimento. É nessa hora que o sofredor se entrega — com a visão debilitada, micção sem controle... Já não se lembra de quem é e, se lhe disserem “você é um grão de areia”, ele ficará em dúvida se não seria melhor ser pó, querendo pegar carona na primeira tempestade que passar.


Na viagem pelas páginas, chegou à de número 400. O capítulo seguinte é deixado de lado até que ele tome um pouco de água. Seus compromissos vivenciados ontem vêm à tona: a reunião com o sócio, a sobrinha dele com dois anos de idade, o espaço grandioso da mansão — e a prova de que está caminhando no tempo há bastante tempo — é confirmada pela prima de rosto cadavérico, aquela que dividiu o velocípede com ele e que agora encontra seu único prazer em observar a neta se alimentar na cadeirinha apropriada.

— Cada um encontra uma maneira de se enganar — pensa ele, incluindo-se nesse rol de “cada um”.


Pega o celular para apreciar pinturas expostas na internet. As obras criadas pelos grandes artistas proporcionam-lhe bem-estar — especialmente Café no Jardim e O Alquimista —, a ponto de pedir à esposa que imprima, em papel de alto padrão, duas cópias de cada. Seu objetivo é afixá-las em pontos estratégicos do apartamento, para poder deter-se diante dessas manifestações de talento.


Depois de onze dias de peleja, ele chega ao final do livro e reflete longamente sobre o termo “Beira do Mundo”, usado por um gato falante que afirma que, naquela beira, todos os seres vivos conseguem se comunicar.


Quanto ao significado de “O Menino Chamado Corvo”, bem, é melhor ir atrás desse segredo que ele preferiu não revelar.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 05.11.2025 - 13h15min.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Lançamento de O LAVRADOR DE RIMAS, livro de Hélio Crisanto


A Editora CJA tem a alegria de apresentar O Lavrador de Rimas, o mais novo livro do poeta cordelista Hélio Crisanto. 

Nesta obra, o autor exalta o sertão nordestino com a força de sua sensibilidade poética. Como o próprio título sugere, Hélio Crisanto semeia palavras e colhe emoção, conduzindo o leitor por uma prosa envolvente e profundamente nordestina. 

Descubra a beleza da cultura popular em versos que celebram a identidade e a alma do nosso povo.



sábado, 25 de outubro de 2025

RETORNO INCONSCIENTE

 


RETORNO INCONSCIENTE


Suas indecisões bateram na essência da leitura.

— Por que se lê tanto e não se fica saciado? — perguntou-se.

Todos os dias, ele inventava formas diferentes de ler. Tentou, utilizando o ritmo da respiração, acompanhar com mais simpatia a ideia conduzida em cada momento em que os olhos captavam a sequência em que as letras estavam arrumadas. Seu foco era desfocado, como o barulho de uma moto levando-o a pensar no entregador de pizza, num playboy desocupado  

num professor com a mochila nas costas, olhando o relógio para não chegar atrasado.

— Por que você esconde o conhecimento do meu consciente? — perguntou à própria mente, tentando perceber se o enredo estava realmente oculto ou apenas esperando o momento certo para se revelar. Era um longo jogo de gato e rato, até que a engrenagem que move as lembranças começou a dar sinais de vida.

Deixou os pensamentos se acomodarem. A leitura, antes um esforço, passou a fluir por dentro dele sem resistência. Cada palavra encontrava uma fenda onde se encaixar, limpando, com novos significados, o que já havia sido instalado. O sentido surgia num movimento constante que não dependia de controle.

A mente começou a se acalmar diante das frases, com o entendimento se rearranjando de forma que já não precisava de tantas pausas para compreender.

Continuou lendo até chegar ao nível em que tudo permanecia dissolvido entre letras. As linhas perderam fronteiras. Ele já não lia: era lido. As palavras o atravessavam com uma nitidez que vinha do espírito. As sílabas ecoavam num ir e vir que lembrava ondas do mar.

A história seguia com relâmpagos de lembranças antigas. Os personagens surgiam, diluindo-se em seus atos — e ele vibrava num mesmo campo, vendo, ouvindo, sentindo a história por inteiro, com sutis explicações que mal davam para ser assim nomeadas.

A cada parágrafo, uma nova respiração do mundo, que ele aproveitava para viajar, pegando carona sem sair do lugar, seguindo o ritmo que pulsava por trás de cada personagem. O texto o envolvia e o conduzia para lembranças antigas, onde o ato de ler e o de existir se tornavam o mesmo — nessa reeleitura de O Grande Gatsby.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 25.10.2025 — 05h25min

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

O BÁSICO - Maria Goretti Borges




O Básico

O que distingue o básico do extraordinário? Essa distinção é necessária? É possível? Há uma interdependência entre esses elementos? Comumente, costuma-se estabelecer contrapontos quando lidamos com dados em perspectivas diferentes.

O básico e o extraordinário seriam como a inspiração e a expiração que, num processo oposto e complementar, são igualmente importantes para a manutenção da vida? No evangelho de Lucas, capítulo 17, a fé é responsável pelo extraordinário: "Se vocês tivessem fé do tamanho de uma semente de mostarda, poderiam dizer a esta amoreira: 'arranque-se daí, e plante-se no mar'. E ela obedeceria a vocês."

Na mesma parábola, temos o empregado que obedece ao seu senhor, fazendo tudo o que lhe foi ordenado, sem exigência alguma. Nesse contexto, a exemplo do empregado, também nos é feita a seguinte solicitação: “quando tiverem cumprido tudo o que lhes mandaram fazer, digam: ‘Somos empregados inúteis; porque fizemos apenas o que deveríamos fazer’.” Como podemos observar, o empregado fez o básico, o trivial — ou melhor, apenas seguiu ordens. E cada um de nós, no cotidiano de uma vida inteira, nos rebelamos ou apenas cumprimos determinações? Pelo visto, a fé difundida no evangelho de Lucas, capítulo 17, não permeia o dia a dia dos míseros seres.

Mesmo assim, nos deparamos com sujeitos que, submergidos num ideário de crenças e movidos por elas, propagam feitos excêntricos, mirabolantes. O básico, que tanto nos habita, preenchendo espaço/tempo, nos impede de perceber que somos apenas servos inúteis. Em seus versos, o pensador contemporâneo Raul Seixas, discorre, brilhantemente, sobre a condição limitada do ser humano.

“[...] É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa 10% de sua cabeça animal.
E você ainda acredita
Que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social.”
(Raul Seixas)

O extraordinário se inicia pela tomada de consciência de quem se é; da análise de possibilidades e limitações. Conhecer, para amparar as debilidades, ressaltar as forças, formatar o pensamento — dá sentido às palavras! Ideias bem construídas e embasadas se transplantam, provocam transformações. “Quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso.” (Melanie Klein)

As ideias entrelaçadas constroem discursos, configuram ideologias. Quando uma figura pública, ciente do poder ideológico de sua obra, faz um chamado, convoca para uma mobilização — a exemplo de Caetano Veloso —, o que dá respaldo a essa convocação não é a pessoa física, o sujeito, mas o conjunto de ideias propagadas ao longo de sua carreira e a crença da identificação de muitos com essas ideias. O paraíso da acomodação nos remete a estágios primários, preliminares onde o outro é proprietário e você, alheio a si mesmo!

O extraordinário está contido na subjetividade — fé, coragem, força, percepção, audácia, perspicácia, criação, no mais que humano, no que extrapola, na dúvida, na polidez do ser.

Num cenário de devastação, a exemplo das guerras, é muito significativa a constatação de que forças, crenças e confiança no outro — até quando não se devia — ancoram pessoas, mesmo nas condições mais inóspitas. Dos danos causados pelas guerras, os da alma são os mais devastadores. Essas, mesmo dilaceradas, encontram amparo na esperança de um novo dia, que se inicia a cada nascer do sol. O novo é sempre radiante e promissor, um fertilizante próspero. Os senhores da guerra são ordinários (xingamento). Extraordinário é o livro de Viktor Frankl — Em busca de sentido.

Quantos adjetivos cabem num olhar? Não sei mensurar. Os olhares, a depender da luz que emanam, podem ser descritos como: olhar de admiração, de tristeza, de desejo, de censura, indiferença, compaixão ou um olhar sem visão... Qual o alcance de um olhar? O quão revelador esse olhar pode ser?

Ao descrever uma imagem, o sujeito revela-se tanto quanto a configuração da imagem por ele captada. João Gilberto, artista brasileiro, ao observar mulheres descendo o morro, falou: “Lá vem o Brasil descendo!” O que podia ser um simples olhar revela a constatação de meio século de história de uma nação (extraordinário).

“[...] Da sua escola é passista primeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
No equilíbrio da lata não é brincadeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira.”
(Moraes Moreira)

Nessa construção literária, o poeta enobrece a força e a resistência de um povo que, através de seus malabares, na arte da sobrevivência, resiste bravamente. O básico também é belo — viva o povo brasileiro que desce e sobe ladeiras, num vai e vem sem fim!


Maria Goretti Borges

MAU AMBIENTE - João Edilson Fontes

 


MAU AMBIENTE 

(João Edilson da Silva Fontes)


Muitas letras em lixo, 

Muitas árvores que davam sombra e oxigênio 

Tornaram-se papel sustentando resíduos 

Mais fétidos do que os fecais.


Letras sem o sopro da inspiração 

É total extravio e agressão.

Muito lixo nas estantes. 

A todo tempo, mais lixo e pouco espaço. 


Coitada da "nuvem", que acumula tudo, 

Lixo produzido ciberneticamente.


— Por onde anda o luxo 

Gráfico, fonético e poético?





domingo, 12 de outubro de 2025

PREGUIÇA REFLEXIVA

 


PREGUIÇA REFLEXIVA


— Hoje não estou a fim.

— Não tem isso de estar ou não a fim. É o seu trabalho. Vamos, vamos, comece.

— Posso escrever o alfabeto?

— Não. Isso não. Escreva um texto inédito, que possa ser considerado literatura.

—Iiiiih! Agora complicou. Vamos fazer um negócio: desconte aí no meu salário, porque hoje quero só ficar nas redes sociais, vendo as mulheres dançar.

O chefe saiu, e ele ficou pensando em como fazer cumprir o contrato. Quando escrevia de acordo com sua disposição, era bom; agora que virou obrigação, ficava contando os dias para voltar a ser livre.

“Acho que essa indisposição tem a ver com a minha derrota ontem no tênis”, disse para si. “Eu sempre vencia com facilidade aquele cara, mas depois que ele trocou de professor... Agora, como vou administrar o meu ego treinado para vencer?”

Essa trava continuava fazendo-o ficar sem pensar. Daqui a pouco, ia precisar tomar remédio para pressão alta. “O que não faz um ego ferido”, pensou. Sentiu raiva e impaciência com o que lhe veio à mente. Dobrou o joelho esquerdo, sentindo-o fatigado. Gritou um palavrão — ou melhor, vários.

Nessa hora, despertou-lhe a curiosidade sobre a função do palavrão no dia a dia. “Isso daria uma tese de doutorado em psicologia”, pensou, percebendo que acabara de encontrar o que procurava. “Depois vejo isso”, disse, e voltou para suas dançarinas em trajes minúsculos.

Uma das tatuadas contou que o marido tinha três mulheres — ela, hétero, e duas bissexuais — e foi explicando como era o relacionamento.

A cada dia surgem novas conversas: antes restritas a sussurros, agora abertas a todos, analisou ele ao passar a página.

O braço continuava com epicondilite — nome bonito para uma dor terrível no cotovelo. A esposa ligou, dizendo quantas séries tinha feito puxando ferro. Durante o telefonema, descobriu que o maior desafio é ser ouvinte: dar atenção aos outros quando se quer apenas ficar só é a comprovação de que a pessoa dispõe da mais alta tecnologia cerebral.

Pouco tempo depois, recebeu uma mensagem do chefe:

— “Posso ligar para você?”

— “Sim.”

— “Rapaz, estou me separando. E, como você alugou aquele nosso apartamento, gostaria que fosse testemunha de que fui eu quem fez, com meu dinheiro, a reforma no imóvel. Ela nega. Diz que não, que foi ela.”

Conversaram sobre a dor da separação até que...

“Vou desligar porque tenho uma reunião com a governadora”, disse o chefe, que havia desenvolvido vitiligo. Será que a mulher estava se separando dele ou do vitiligo?

Levantou-se, foi à varanda e pensou em armar a rede. “Dá muito trabalho”, disse, ao se deitar no sofá.

Seu oponente mandou uma mensagem: “Mestre, vamos jogar hoje?” “Estou sem grana para pagar o aluguel da quadra”, respondeu, querendo apenas ficar descansando. Essas cobranças o matavam.

Preferia se empenhar para ultrapassar os competidores do Duolingo. Desconfiava que eram todos criados por IA, pois acordou às duas da manhã e nenhum ponto havia sido acrescentado no placar. Quando começou a jogar, os outros também o fizeram. Esses aplicativos são cheios de pegadinhas.

Baixou um do shopping que dava desconto no estacionamento. No segundo acesso, já não funcionava. Desinstalou, voltou a instalar — e o desconto foi concedido.

Já era noite quando a recepcionista combinou para que ele cobrisse a saída dela mais cedo. Uma das amigas trouxe um bolo, que ele acabou comendo também com a substituta que veio cobrir a última hora do expediente.

Depois, foi para a casa da mãe comer bode cozinhado. No caminho, achou que seria melhor comer cabra — só que ninguém come cabra: a tradição é dizer “comi bode”, mesmo tendo sido uma cabra a assassinada pelo açougueiro e exposta para venda. O machismo, mesmo aplicado de forma negativa, prevalece.

Na verdade, ele era um pouco canibal. Quando observava uma pessoa, sempre imaginava que ali estava uma grande porção de proteína. Aquela proteína assumia cargos públicos, às vezes era atleta etc. Guardava seus pensamentos impróprios para si, pois chegava a pensar que, nos abrigos, viviam bodes velhos prontos para ser devorados pelos mais fortes, caso houvesse uma hecatombe nuclear. No olhar de um tigre, toda a humanidade não passa de proteína.

No dia seguinte, estava satisfeito com a vitória no tênis. O bode fora superdelicioso; aprendera a burlar os inimigos do Duolingo reiniciando o celular toda vez que acabava de jogar.

Se o chefe ficou insatisfeito com esse texto, aí estava a razão de a mulher ter fugido de casa, pedindo divórcio: pois é, chato de carteirinha ninguém aguenta.


Heraldo Lins Marinho Dantas 


Natal/RN, 11.10.2025 — 13h21min.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

DOMINGO SALGADO



 DOMINGO SALGADO


Empurrando um carrinho na praia, o vendedor gritava: "Olha o picolé!" Entre um grito e outro, analisava se a divulgação estava sendo bem feita. Sua tarefa era vender duzentos. Assim, teria condições de comer uma fatia de queijo naquele último domingo do ano.


— Como será a próxima década? — perguntava-se, já pensando nos números que ia jogar na loteria.


Arquitetava o plano de chegar disfarçado ao banco para receber a bolada sem ser assassinado, caso fosse um dos felizardos. Estava um pouco triste com o que dissera um vizinho: o governo usa a loteria para deixar a população esperançosa e esquecer a miséria.


Não se deteve nesse comentário porque seu principal objetivo é conhecer a Lua. Gostaria de ver as crateras, caminhar voando, olhar a Terra e dizer: nasci ali. E, quando voltasse, nas noites de lua cheia, observá-la da praia ao som de um violão acompanhado por uma cantora de ópera. Amanheceria embriagado, chutando as oferendas para Iemanjá, além de contratar um anão para jogá-lo ao mar toda vez que saísse d’água.


Outro sonho era construir um harém com mil concubinas e, quando acabasse o dinheiro, voltaria a vender picolés.


Uma nuvem de tristeza abateu-o ao se lembrar de quando era lutador. Tudo que conseguiu no ringue jogou fora, restando apenas algumas cicatrizes e um olho cego como herança do tempo em que nadava na fama.


Não sabe por que esses pensamentos sempre vêm quando menos espera. Se pudesse, desligaria alguns nervos do cérebro que sustentam essas memórias e os reconectaria para formar novas e boas lembranças.


Os fantasmas das pessoas falecidas o importunam como se estivessem vivas, apontando-lhe o dedo:

— Você fez isso, fez aquilo, deveria ter feito assim...


Se existisse uma forma de estagiar na vida, ele teria escolhido poder errar com a certeza de sempre ter alguém para ensiná-lo a viver.


— Tem picolé de uva? — uma criança tirou-o do devaneio.


Ele abriu a tampa para mostrar os sabores, recitando-os de cor.

— Usem suas mesadas de acordo com o combinado — respondeu o pai do menino ao receber o pedido para pagar.

— Deixe comigo que assumo a conta — disse a mãe.


Um de coco, uva e cajá foi distribuído.


Retiraram-se. O ex-lutador voltou às suas memórias. Sempre estava estacionado no passado e voltava para lá assim que se sentia inseguro. Nem fez conta do apurado, nem teve ânimo para continuar gritando. Viu-se naquela criança, quando pedia ao pai um daqueles que agora vendia.


Talvez tenha sido esse sonho não realizado que o fez escolher esse meio de vida.


Uma moça chegou gargalhando por uma pilhéria dita há pouco por alguém.

— Quero este aqui — disse ela, saltitante.


O pai fingiu que não viu ela se debruçar para pegar um de acerola. A mãe fingiu que não viu o marido fingir que não tinha visto.


— O senhor paga o meu? — perguntou a moça ao marido fingidor.

— Ele está sem a mesada — respondeu a esposa, encarando a sorridente.

— Pode deixar que é cortesia da casa — disse o vendedor, já se engraçando com a bronzeada.

— Ah, muito obrigada. Quem quer picolé? — a moça passou a divulgar o produto.


— Vamos andar por ali que o senhor já, já vende tudo — disse ela. Saíram os dois, areia afora.


A moça, sem ter o que fazer, resolveu experimentar ser vendedora. Sua vontade de aprender fez com que se interessasse em sentir, na prática, como é a vida de um trabalhador que nem aos domingos descansa.


Ali estava ela, saboreando um pouco do trabalho duro no sol quente, em troca de migalhas.


— Quando chegar em casa, vamos conversar — disse a esposa, chupando o de coco.


Uma bola bateu no castelo de areia que a filha havia feito.

— Você aceita? — perguntou a esposa para o garotão que tinha vindo buscá-la.

— Não, ele não aceita — interferiu o marido, respondendo pelo rapaz, que saiu meio sem jeito depois de pegar a bola.


O sol estava a pino quando voltaram para a barraca.

— Traga este prato — pediu a esposa.


Ela nunca disse ao marido, mas essa coisa de dar em cima das mocinhas em sua frente era proceder de quem não batia bem da cabeça.


— Olha o churro! — outro vendedor passou oferecendo também óculos, pulseiras etc.


— TUBARÃO! — gritaram os salva-vidas.


Os surfistas saíram do mar. Um bote dos bombeiros foi acionado para fisgar a fera.


No meio da muvuca, uma criança chorava com uma queimadura provocada por água-viva.


Um banhista passou chamando a atenção por estar sendo seguido por um bode. O bicho já estava acostumado àquele passeio dominical. O rapaz que filmava, ao dizer olá, ouviu um bééé berrado pelo animal, que fazia as vezes de porta-voz do dono.


A maré estava subindo, chegando perto do castelo da menina, que pensava no tubo de creme dental que havia deixado em cima da pia. Era costume dela comer pasta.


— Quando eu chegar em casa, vou me trancar no banheiro e comer até não querer mais — pensava ela, insatisfeita com seus olhos míopes.


Quando a mãe mandava escovar os dentes, ela escovava e engolia tudo. Às escondidas, já botava desodorante.


Acreditava nas tias que diziam: “Já tá uma mocinha.” Quando crescesse, iria para bem longe dos pais, para poder ficar com as duas mãos na cabeça, olhando para baixo, olhos fechados, sem precisar dar satisfação de que estava mapeando o pensamento.


Toda vez que fazia isso, vinha logo alguém perguntar se estava com dor de cabeça.

— Que saco!


A mãe, embaixo da palhoça, disfarçadamente observava sua própria barriga pedindo por uma lipoaspiração.

— Quando eu estiver sarada, ele jamais vai olhar para essas sirigaitas — pensava ela, tomando um copo da cerveja gelada.


O garçom chegou com o almoço e colocou a bandeja na mesa.

— Chegue, crianças.


Ninguém teve notícia se a moça aceitou ou não o convite para morar com o homem do olho cego. Só se sabe que, na semana seguinte, ela estava vendendo óculos e pulseiras em outra praia.


O tubarão conseguiu fugir, levando o braço de um dos bombeiros que tocava tarol na banda da polícia. Ainda no hospital, ele chorava — não por perder o braço, mas porque agora só havia a opção de tocar bombo.


A mulher saiu aborrecida da barraca porque um palhaço vendedor disse:

— Vai querer comprar uma língua de sogra, gordinha?


A menina teve seus óculos quebrados por uma bolada. Chorou, mas logo parou quando se lembrou do creme dental.


O bode morreu afogado, e o garçom levou um seixo.


Feita a avaliação, chegou-se à conclusão de que, nesse domingo, tudo transcorreu na mais pura normalidade.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 08.10.2025 - 08h45min.

domingo, 5 de outubro de 2025

SALTO SOCIAL

 


SALTO SOCIAL


Os pés, andando na calçada, pisaram numa bituca suja de batom. Ainda bem que estavam protegidos por um par de sapatos, número 38, vermelhos e brilhosos. Como de praxe, as pernas os guiavam, enquanto as coxas os censuravam, pois, segundo elas, eles só serviam para cumprir determinações. Uma meia-calça preta compunha o visual por baixo de uma minissaia vermelha.

Os pés pararam, esperando a liberação do semáforo. Ao lado: buzinas, cansaço, raiva... Nem o poste, com sua luz de LED, estava satisfeito. Nenhum pingo de chuva foi pintado no quadro daquela noite — apenas uma multidão de medos permanecia parada pelo relógio das obrigações.

Chegara o momento de atravessar a rua, e o desafio de continuarem se equilibrando nos saltos-agulha persistia. Se não tivessem fugido do altar, talvez nem precisassem andar tanto para encontrar a subsistência.

A noite estava sem lua, sem vagabundos e sem vaga-lumes. Mesmo que houvesse lua, ninguém teria tempo nem vontade para observá-la. O suor escorria de algumas células sudoríparas em seus momentos finais de vida. Dores na lombar manchariam a imagem do exame, caso precisassem provar que estavam lá. Aquela travessia parecia que nunca terminaria. Os buracos no asfalto exigiam concentração. Mesmo assim, um folheto — há pouco nas mãos de uma garota-propaganda do bar ao lado — foi pisoteado. Um chiclete ia sendo comprimido junto com grãos de areia, cacos de vidro e pó de asfalto — tudo isso no solado, sem que se pudesse ver com nitidez.

Outros pés se encontraram naquele passar rápido. Alguns quase machucaram os da frente. Olharam, notando como havia colegas na rua àquela hora. Botas, tênis, sandálias — todos seguiam cumprindo sua missão. Muitos, furados e sem brilho, contrastavam com os comprados ainda há pouco.

Chegaram ao outro lado da avenida. Que rumo tomar? Eles apenas aguardaram a vontade decidir. Seguiram para a direita.

— Será que estamos voltando para casa?

— Não — disse o pé esquerdo, reconhecendo a entrada do hotel onde faziam ponto quase todas as noites.

Uns pés pretos, novatos, lhes barraram a passagem.

— Sou hóspede — mentiu a dona, dando continuidade ao pisado no porcelanato branco.

Pararam sobre a barra da recepção, onde quase não se notava movimentação. Pés masculinos aproximaram-se, apoiaram-se na mesma barra, balançaram-se e tornaram a se apoiar.

Um cão os cheirou, mas foi afugentado por um rápido e discreto bicudo no focinho.

— Ainda bem que não urinou em nós — cochichou o pé que tinha uma cicatriz no calcanhar.

Voltaram a caminhar para uma das suítes do hotel e saíram por volta da meia-noite. No caminho de volta, desviaram-se de água parada e evitaram uma palha de coqueiro seca, além de sentir o atraso de afundar-se na areia fofa do morro. Chutaram a porta empenada, que nunca seria pintada, e entraram em casa.

Foram, finalmente, liberados dos sapatos — não tão brilhosos como no início da noite.

Na calada da madrugada, reuniram-se num bate-papo informal com os dez dedos que tiveram papel importante na condução daquele corpo.

Alguém surgiu.

Ah, era um bicho reconhecido por eles.

— Fique longe da gente.

Na penumbra, a paz reinou novamente, com o bicho-de-pé expulso pela unha do dedão.

Os pés pulsavam e se esfregavam na descompressão. O sossego foi quebrado pela requisição para levarem uma bexiga cheia ao banheiro.

Entre o piso e eles, havia uma sandália de dedo, gasta por um calo surgido do desalinhamento da coluna.

Caminharam e viraram-se. Os joelhos entraram em ação, ajudando-os no alívio do peso, mas não conseguiram evitar o barulhinho na privada.

Na volta para a cama, um dos seus colaboradores bateu na quina. O mindinho, querendo chamar a atenção, foi socorrido pela mão da massagem rápida — que logo o abandonou para puxar o lençol.

Tudo voltou à normalidade.

A minissaia, jogada num canto, reconheceu que sua vida só tinha sentido graças à existência deles: os pés.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 04.10.2025 -10h10min.




quinta-feira, 2 de outubro de 2025

MENTE SATURADA




MENTE SATURADA


Andou perambulando atrás de uma ideia para expor. A cabeça latejava, enquanto sua esposa procurava uma cartela para colar os selos que lhe dariam direito a uma faca do chef.

— Já encontrou a cartela? — perguntou-lhe.

— Se eu não encontrar, é porque alguém roubou — disse, com uma gargalhada de brincadeira em sua direção.

— É nisso que dá não ter ideia — murmurou ele.

Pelas redondezas, uma música teimava em fazer parte do seu cotidiano, juntamente com um grupo de cinco pagodeiros vestidos de preto, ao lado da chuva fina de que ninguém queria saber.

O dia amanheceu, o bar silenciou, e a chuva precisou engrossar para que se prestasse atenção nela. Não foi fácil pegar o caminho de volta sem que os instrumentos musicais ficassem encharcados.

Daqui a pouco, reiniciará mais um esquento no bombo, pensou o batuqueiro, que nem se deu conta do porquê de gostar tanto de expressar a musicalidade herdada da senzala.

A mulher saiu dizendo que ia para a academia. Ele preferiu ficar disputando um jogo virtual com parceiros também virtuais. Hoje, só percebe que é real por causa das dores no joelho.

A chuva passou. O sol quis ser registrado. Atendido o pedido, ele olhou para um molho de coentro. Só lhe restava filosofar em cima do coentro.

— Coentro sente dor?

— Por que não é vermelho como caqui?

Preciso apagar isso, pensou, pois estaria produzindo provas a favor da sua internação no hospital psiquiátrico.

Apagada a filosofia sobre o coentro, saiu da cama, alertado pela volta dela abrindo a porta.

— Estou com setenta e um quilos — disse, ao chegar suada, depois de puxar ferro por uma hora e pouco.

— Não percebo que emagreci, do jeito que não percebia quando estava gorda — conversava no caminho do banho.

Enquanto esperava o desjejum, veio-lhe o pensamento sobre tampas.

— Aluguei o sítio, e o locatário está produzindo, além de queijo, manteiga — disse seu primo, pedindo-lhe que comprasse qui

 nhentas tampas para as garrafas de manteiga.

Vasculhou o comércio do bairro — e nada.

— Onde você vai encontrar é por trás da funerária — confessou a feirante, que ainda lhe deu dois saputis para degustação.

Foi. Um homem com aproximadamente duzentos e cinquenta anos o atendeu. Para poder entrar na loja especializada, passou por um interfone, uma porta de vidro com grades e, depois, mais outra porta. Nunca imaginou que tampas de plástico exigissem tanta segurança.

O homem alto lhe mostrou os modelos, as cores etc.

Saiu satisfeito para outras compras. No dia seguinte, voltou lá para trocar as tampas.

— Não — disse o comerciante. — Aqui não trocamos, só vendemos.

Acionou o Procon, mas os fiscais não encontraram a loja.

— O que existe naquele endereço — disseram-lhe — é uma casa em ruínas.

Procurou as tampas para provar a compra, porém não as encontrou.

Ligou para o primo, contando o ocorrido. Ele disse que nunca precisou de tampas e que também não havia ligado pedindo que ele fizesse tal compra.

Desligou o telefone e foi internado no hospício. Passou alguns dias, e lá reinava a cultura da fuga.

— Amanhã, logo cedo, vamos todos pular o muro — disse-lhe o comandante da revolução dos doidos.

Aguardou a hora com muita ansiedade, já que não suportava aquele ambiente.

Conseguir fugir era o mesmo que vencer uma olimpíada. Quem pulasse o muro era endeusado, mesmo que depois fosse encontrado vagando pela rua.

Na hora marcada, foram sorrateiramente. Chegando ao local mais baixo, perceberam que a chuva havia derrubado aquilo que os separava do mundo dos sadios.

— Vamos fugir! — gritou para o comandante.

Ele simplesmente disse:

— Não.

— Por que não? — perguntou, já com os pés do lado de fora.

— Não tem graça fugir sem pular o muro. 


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 01.10.2025 - 17h50min.

domingo, 28 de setembro de 2025

VIDA ECONOMIZADA



VIDA ECONOMIZADA


Depois de perceber que demorava um minuto para dobrar os lençóis e ajeitar os travesseiros, ele decidiu nunca mais arrumar a cama. A decisão surgiu quando multiplicou os dias, somou os anos, aplicou porcentagens de margem de erro e concluiu que estava desperdiçando dois dias e meio a cada dez anos.

A escolha causou certo alvoroço no grupo da família, onde ele a compartilhou — com gráficos e tudo. A partir daquele dia, sua cama passaria a ser um território livre do desperdício de tempo e esforço. Para ele, cama desarrumada seria sinônimo de inteligência aplicada.

Não parou por aí. Tomado pelo espírito da otimização, planejou começar uma poupança alimentar. Separava, com todo o rigor de um relojoeiro suíço, um único grão de feijão dos trezentos gramas que comia todos os dias. Calculou que, em um ano, teria reservado trezentos e sessenta e cinco grãos — cem gramas, aproximadamente. Se alguém dissesse que era pouco, ele rebatia que, em três anos, conseguiria economizar uma refeição.

Logo depois, achou desperdício usar um palito de fósforo inteiro para acender uma única boca do fogão. Fez testes, medições e concluiu que metade de um palito bastava para gerar a chama necessária — desde que a mão fosse firme e o movimento, rápido. Munido de um estilete, passou a cortar todos os palitos ao meio. “Cem fósforos viraram duzentos”, anotou em seu caderno, onde mantinha registros que iam desde o consumo mensal de água até a durabilidade média de uma esponja de lavar louça. Para ele, não se tratava de avareza, mas de lógica pura.

Foi então que voltou os olhos para o rolo. Depois de alguns dias de experimentos práticos, chegou à conclusão que a maioria das pessoas usava papel higiênico sem a devida concentração. Optou, portanto, por destacar apenas um pedacinho. Criou até um molde de papelão com o tamanho ideal do recorte.

Na cozinha, a revolução seguiu firme. Percebeu que esfregar cada prato com sabão era um luxo do qual podia muito bem abrir mão. Passou, então, a apenas jogar um fiozinho de água sobre a louça usada, deixando-a estrategicamente inclinada na pia, pronta para o próximo uso. Os talheres foram promovidos a residentes fixos de um pote com água, onde repousavam, livres do sabão e da perda de tempo com enxágues. Quanto aos pratos, passou a comer direto da panela, com a mesma naturalidade com que tomava café em copo de geleia reaproveitado.

Certa tarde, após calcular o gasto anual de energia elétrica com o ferro de passar, somado ao tempo perdido entre camisas e fronhas, tomou mais uma decisão definitiva: venderia o ferro — “aparelho opressor e ultrapassado”, como passou a chamá-lo.

“Se roupa rasgada virou moda, por que a amassada não pode ser tendência?”, argumentava, olhando-se no espelho com uma camisa social que parecia recém-saída de um furacão. Batizou a ideia de “moda funcional”. Enquanto os outros ainda lutavam contra vincos e dobras, ele desfilava pelas ruas com seu look enrugado e expressão de quem não estava nem aí.

Foi numa manhã de domingo que resolveu andar descalço. Tirou sapatos e meias e os guardou numa caixa rotulada como “legado histórico”. Cada passo, sentindo o piso gelado sob os pés, era um novo território conquistado, e, assim, passou a circular livremente, pés no chão e contas na cabeça, evitando solados novos e lavagem de meias.

Inspirado pelos benefícios da vida simples, começou a repensar a necessidade do banho diário. Cada um, com cerca de dez minutos, representava, em média, 80 litros de água e um consumo considerável de energia. Somando-se a isso o gasto com sabonetes, xampus e toalhas, a conta ficou indigesta.

Resolveu, então, adotar o “banho estratégico” — termo que criou para designar uma higienização parcial, com pano úmido, nas áreas de maior movimentação. Criou até um cronograma rotativo: segunda, axilas; quarta, pés; sexta, regiões sensíveis; e domingo, banho completo.

No auge de sua filosofia de economia total, chegou à conclusão inevitável: viver dava trabalho demais. Mesmo com todos os cortes, ajustes e sacrifícios, ainda havia contas a pagar. A existência, segundo ele, era um projeto demasiadamente caro para alguém comprometido com a eficiência absoluta.

E foi então que, em seu caderno de anotações, escreveu o último cálculo:

"O morto não gasta — não precisa comer, nem dormir, nem lavar nada. Não sente calor, frio, vergonha ou tédio. É a paz do saldo zerado."

Preparou-se como quem encerra uma conta bancária. Deixou tudo anotado, inclusive um bilhete:

"Chega uma hora em que a única forma de parar de gastar é parar de estar."

E assim, partiu em silêncio, com planejamento e sem excessos. Nenhum velório pomposo, nenhuma coroa de flores — apenas um bilhete na porta:

"Favor não chorar, desperdício de água salgada."


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 28.09.2025 - 08h28min.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

SOBRE HISTÓRIAS MAL CONTADAS DAS TERRAS DE MERICÓ - Gilberto Cardoso dos Santos



Perguntaram-me: 

- O livro Histórias Mal Contadas de Mericó, da autoria de Aldenir Dantas, é bom?

Respondi:

- É tão bom, mas tão bom, que o emprestei por 15 dias em 2024 a uma pessoa muito honesta e até agora não o recebi de volta.

Na verdade, dizer que é bom não é suficiente, pois se trata de uma obra diferenciada, digna de destaque. O autor, por excesso de modéstia, pôs no título que são histórias mal contadas, mas isso não corresponde à verdade. Aldenir escreve divinamente bem, põe poesia em suas bem traçadas linhas! Suas histórias, tão dele, tão nossas, nos fazem rir, refletir e às vezes até chorar.

Sua linguagem transita entre o popular e o erudito. Sem medo de parecer regionalista, ele proseia sua aldeia com maestria, sempre dialogando com outras realidades e tempos e a insere na universalidade das boas produções literárias.

Neste livro, Aldenir cristalizou a voz e o imaginário do povo em sua essência, lapidou histórias que não deveriam ser esquecidas. Mericó é Coronel Ezequiel, mas poderia ser qualquer outra cidade interiorana radicada no Nordeste. Mericó, como o sertão, está dentro da gente.

Trata-se de uma obra física e conteudisticamente robusta - quase 250 páginas em papel especial - repleta de contos recheados de causos burilados e  entesourados pelo autor. Podem julgar o livro pela capa, belamente ilustrada por Jefferson Campos.

Se quiser ver a opinião de alguém da academia, do mundo das letras, leia o que a pós-doutora Valdenides Cabral escreveu em  https://apoesc.blogspot.com/2021/09/merico-mericos.html

Ouça, também, o que nos diz o próprio autor em https://www.facebook.com/reel/1341876030663425 

Já o li na íntegra, reli em parte e encerro dizendo: vale a pena ler de novo.


Gilberto Cardoso dos Santos


Gmail, Instagram e Facebook: gcarsantos ( fone 84 999017248)




Obras de Gilberto Cardoso