sábado, 20 de setembro de 2025

CRIATIVAMENTE CAÓTICO



 CRIATIVAMENTE CAÓTICO


Levantou-se, como qualquer pessoa sadia se levanta da cama, da poltrona etc. Colocou os pés no chão, nas sandálias, na lama etc. O autor estava em dúvida sobre o que o personagem faria, por isso o leque de possibilidades. 


Depois que o personagem se levantou, ficou esperando um comando para ir se caracterizando dentro do texto. Sem muita ansiedade, torcia para voltar a dormir, isso porque sentia empatia pelos costumes do autor.


Uma nuvem escura surgiu no céu. Tinha a cara de Haruki Murakami — logo descoberto por tentar tomar conta deste espaço autoral com seu estilo característico de inserir detalhes da natureza em suas obras.


O autor original estava bem descontraído depois de desmascarar essa tentativa, quando percebeu uma mulher linda e bêbada saindo de um bar escuro, fumando um charuto e jogando as cinzas no chão.

— Ah, não! Até você, Charles Bukowski? Também quer tomar conta disso aqui com seu estilo alcoolizado?


O leitor queria desistir da leitura, por causa dessas interferências.

— Calma — disse o autor —, ou apagarei o que já foi escrito e continuarei exercendo meu direito de ficar indeciso. Saiba que aqui é um pouso certo para amigos escritores; portanto, não há pressa.


— Eu não posso ficar aqui parado, esperando a morte chegar — reclamou o personagem.

— Espere aí! — disse uma das leitoras. — Essa frase, “esperando a morte chegar”, é do meu ídolo Raul Seixas. E só porque ele está morto, não quer dizer que você possa usá-la sem dar os devidos créditos.

— Tudo bem! Fica registrado que é dele.


— Vamos adiante... bem... hã... onde eu estava mesmo?


— Vamos colocar ordem nesta escrita — disse um crítico literário.

— Desculpe-me — interveio o autor. — Quem lhe chamou aqui?

— Vi a porta aberta e entrei — respondeu o crítico. E, sem gaguejar, tossir ou escarrar, acrescentou:

— É melhor relevar o que foi escrito acima, porque eu, sinceramente, não considero isso literatura. E digo mais: estou interferindo para evitar que isso caia nas mãos da professora Aurora Bernardini. Ela, que até já disse que o livro "Torto Arado" não é literatura... imagine o que diria disso aqui.


O autor, percebendo que a discussão continuaria sem chegar a um consenso, avançou nos trabalhos — contudo, sem muita convicção sobre qual direcionamento daria ao personagem. E, por falta de criatividade, recuou para o início, repetindo a palavra:


"Levantou-se..."


Deu um branco, pois estava de ressaca. Então, o jeito foi pedir ajuda a quem havia farreado com ele na noite anterior. Bukowski respirou fundo, acendeu um cigarro, tomou uma garrafa de vinho de uma só vez, cuspiu no chão e, finalmente, escreveu:


"Levantou-se e foi cagar."


Nessa hora, mais da metade das jovens alunas de colégios tradicionais desistiu da leitura. Outras não só desistiram, como também levaram o texto ao conhecimento dos pais, que, por sua vez, perguntaram qual professor havia indicado essa leitura.


A Associação das Defensoras dos Bons Costumes entrou com uma ação impeditiva, visando demitir todo e qualquer profissional da educação que fizesse referência ao presente texto. Na reunião, lá estava, no banco dos réus, o personagem — que ainda não havia ido ao banheiro, tendo em vista que a sugestão de Bukowski não fora aceita.


Um cão latiu fora do prédio — colocado por Murakami com o objetivo de suavizar a leitura. E, tomando o leme da obra com permissão do autor, ele continuou com seu estilo inconfundível:


Na sala de reuniões, havia cadeiras cinza, almofadas, tapetes, um birô e duas mesas cheias de salgadinhos. Em cima das mesas, jarras com suco de goiaba; dentro das jarras, colheres de pau. Quase todas as duzentas e quinze cadeiras (ele havia pedido a um autor de livro de estatística para contá-las) estavam ocupadas por mulheres decentes, sendo que os homens... estavam todos infectados de chatos", interferiu novamente Charles Bukowski.


— Bote esse cara pra fora! — gritou a fã de Raul Seixas.


Murakami continuou:


— Uma borboleta pousou na boca do poço. Não consegui ouvir o barulho da pedra que atirei no poço.


— Dá pra você parar de falar em poço? — gritou, mais uma vez, aquela que se definiu como sendo uma "maluca beleza". E outra: pare de descrever os ambientes como se estivesse fazendo um retrato falado. Isso cansa.


— É o meu estilo — disse Murakami —, assim como o meu nobre colega aqui — apontando para Bukowski — tem uma obsessão por escrever sobre mulheres desmanchadoras de casamento.


O personagem que havia se levantado no início da narrativa pediu para se sentar, pois estava cansado a ponto de desmaiar. Nessa hora, chegou José de Alencar com seu repertório de desmaios:


— Se quiserem colocar mais gente para desmaiar, podem contar comigo — disse o autor de "Senhora", admitindo que desmaios eram sua especialidade.


Para não se passarem por torturadores de personagens, a turma da reunião, além de ignorar José de Alencar, deu permissão para que o autor original continuasse.


Depois de se levantar da cama do hotel, onde estava de férias com a mulher e o casal de filhos, ele saiu do apartamento e se dirigiu para saborear o café da manhã à beira da piscina. Mais adiante, num palco improvisado, uma jovem cantava marchinhas carnavalescas, acompanhada por uma banda de frevo.


— Esta narrativa está muito água com açúcar — opinou Quentin Tarantino, que havia saído do meio de uma gravação só para dar sua opinião.

— Se fosse eu, já colocaria um homem-bomba se explodindo, só para colorir de vermelho as paredes brancas do auditório.


— Agora me digam: o que é que um cineasta está fazendo dentro da literatura? — perguntou aquele leitor que já estava querendo ir embora.


Nessa hora, ouviu-se a sirene da ambulância, levando Aurora Bernardini, infartada por ter ouvido dizer que isto aqui era "a pura literatura com ecos no pós-modernismo".


— É mentira que eu falei o que não sei, e nem tenho nada a ver com infarto de quem quer que seja! Eu só leio... Mas, pelo jeito, nem isso vou conseguir fazer hoje.


O filho do personagem principal perguntou:


— Pai, o senhor pode pedir ao autor para me colocar como sendo o menino voador?


 — Você deseja voar? Sim, igual a Jesus Cristo, quando subiu aos céus sem ter um tico de asa.

Bem, se o autor quiser, ele pode — até porque, pelo menos, os cristãos jamais irão dizer que isso é surreal.


— E você, minha filhinha, o que deseja que o autor faça por você?

— Bem, pai, eu gostaria de ser mãe e permanecer virgem, igual a Santa Maria. Será que é possível?


— Sim, vou falar com ele. E, se ele se negar a isso, nós pedimos demissão daqui e vamos trabalhar com os escritores da Bíblia — pelo menos lá tudo isso é possível, inclusive escrever que Jonas passou três dias e três noites na barriga de uma baleia... e ainda saiu vivo.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 20.09.2025 - 11h19min.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

SILÊNCIO NAS EXPECTATIVAS

 



SILÊNCIO NAS EXPECTATIVAS 


No final de uma noite clara, a jovem se deu conta do quanto sofria. Olhou para o dorso da mão e passou a observar algumas pintas pretas que davam um charme especial ao seu antebraço. Aquilo era de nascença — tanto as pintas quanto a habilidade de refletir sobre as perspectivas de futuro.

— O que está reservado para mim? — perguntava-se, no momento em que apagava do caderno algumas profissões que jamais seguiria. A natureza não lhe havia presenteado com o dom de cantar, tampouco de tocar um instrumento musical, então não seria sensato fazer um curso nessa área, mesmo tendo escutado de um professor que bastava treinar.

— Ele queria era ganhar meu dinheiro — lembrou-se de ter pensado, à época.

Abriu a janela para ver se a lua lhe serviria de gatilho para novas ideias. No celular, viu a foto do bebê que fora, posando no braço da mãe com a mesma lua ao fundo. Sobre a escrivaninha onde estava o computador, havia cadernos, uma xícara de café e canetas, com as quais anotava os possíveis pontos de partida para uma vida cheia de compromissos.

Releu, na agenda, que precisava perder algumas gramas, mesmo que o apetite a chamasse em direção à geladeira. Resistiu. Enquanto tomava água, uma mulher foi atropelada em frente à varanda do seu quinto andar. Lá embaixo, uma pequena multidão de curiosos fazia o papel de atrapalhar o trânsito.

— E se eu fosse a vítima? — pensou. Preferiu sair do campo de visão do acidente e se concentrar nas próprias dúvidas, em vez de puxar fios de possibilidades nos problemas dos outros.

Sentou-se na cama, lembrando-se de uma frase do psicólogo:

— O seu problema é que você não tem ambição.

Mesmo tendo consciência de que não precisava de excessos, sentia a necessidade de preencher seu tempo com atividades que lhe dessem a sensação de pertencimento.

Sua coordenação motora a deixava para trás até mesmo em jogos eletrônicos; portanto, seguir a carreira de atleta também estava fora de cogitação.

— Vá dormir, minha filha! — escutou a mãe gritar lá do quarto.

A partir de amanhã vou começar a mandá-la fazer o mesmo, pra ver se ela acha bom!, pensou, ao fechar a porta da suíte.

— Não estava com sono, e mesmo assim teria que dormir? Santa paciência... — murmurou. Se fizesse os gostos da mãe, seria uma boa menina; porém, se permanecesse com a lâmpada acesa, seria má para a mãe e boa para si mesma.

— Será que é sobre isso que a Bíblia nos fala? Deus e o Diabo numa só pessoa?

Voltou-se para si e percebeu que permanecia andando em círculos. A cada dia surgia um novo desafio, e ela precisava replanejar tudo a partir do zero, como se fosse o pontapé inicial de um campeonato. Queria ser como as pessoas que não estão nem aí, mas sua mente não a deixava em paz. A cada nova mudança em sua rotina, um turbilhão de possibilidades surgia. Talvez fosse assim porque sempre buscou seu próprio caminho.

Ultimamente, vinha sendo cobrada por não ter namorado nem amigos. Suas colegas mais velhas já iam a festas — muitas até mantinham relações como se fossem casadas — e ela sabia disso porque frequentava uma série três anos à frente de sua faixa etária.

— Aonde foi que errei o caminho? — perguntava-se, sem entender a pressão para seguir esse padrão social do “tamo junto”. O pior era que não conseguia se soltar, por mais que se esforçasse.

Deitou-se no sofá para pensar com os olhos fechados. Era assim que tentava se acalmar. A noite já se transformara em madrugada, e ela não pregava o olho. Sabia que existiam milhares de pessoas naquela mesma situação de alerta noturno.

No grupo da insônia, as mensagens corriam soltas:

— Olá, grupo. Há alguém acordado aí? 

— Estou triste... meu gatinho morreu.

— Galera, vcs viram a briga hoje no pátio?

— Acordei agora com um tiroteio aqui perto da minha casa, tá ligado!

— Se alguém souber notícias do meu gato poste no grupo.

— O namorado de Sofia trocou ela por outra, vocês souberam?

— Passei de ano. Agora vou para o ensino médio,  uhuuuuu.

Desligou o celular e voltou a ficar quieta. O lado bom daquele grupo era que servia de consolo para quem achava que só ele tinha problemas.

Considerava certo que, se um dia fosse mãe, seria um desastre. Até um cãozinho que os pais lhe deram no aniversário de dez anos ela não conseguiu cuidar. Depois de um certo tempo, o animal foi doado, em um dia em que ela estava assistindo à aula. Quando chegou do colégio e soube da doação, ficou muito contente por poder voltar a usar o espaço para armar uma rede e navegar sossegada pela internet.

Há poucos dias, notou que seu corpo apresentava um crescimento acelerado, diante da transição de criança para adolescente. Preocupada, passava horas medindo-se, fazendo estatísticas com atenção redobrada, focando nas proporcionalidades entre o tamanho das orelhas, do nariz e da testa, até dar o veredicto: era uma pessoa feia e deselegante — apesar de os meninos da sala dizerem o contrário.

Se continuasse a crescer, talvez pudesse ser modelo, porém lembrou-se das medidas exigidas para a profissão. Não era burra para acreditar que cresceria mais do que seus pais. 

Foi à cozinha à procura de um descascador de cenouras, pois escolhera esse legume como substituto do pão. Sua atenção foi desviada por um barulho no quarto; contudo, já sabia do que se tratava. Pensou, com um ar de cinismo: "Aí estava a razão por que mamãe se preocupa tanto em me mandar dormir cedo."

Para não se explodir com tantos pensamentos, resolveu apagar a lâmpada do banheiro. O escuro total tinha o objetivo de treinar como seria o banho de uma pessoa cega. O sabonete teve que ser encontrado com os pés, pois parecia que as mãos tinham pequenos olhos — e eles deixavam tudo cair ao perceber a escuridão.

— Deve ser o medo de não encontrar de novo o que se perde por estar, literalmente, às cegas.

Desde pequena, pensava em ser uma boa pessoa. Mas, pelos seus cálculos, isso era impossível. Quando agradava alguém, sentia-se injustiçada e quando dizia que não concordava com alguém,  causava-lhe mal-estar. 

Finalmente, adormeceu. Ouviu-se batidas no banheiro e na cozinha. A casa estava acordando. Passos em sapatos de couro fino denunciavam a classe da família; Rolls‑Royce Droptail na garagem com guardas zelando pelo sossego da família, justificava a correria do pai para suprir o padrão de vida — o mesmo padrão que deixava a filha aflita por não ter certeza se conseguiria mantê-lo depois que saísse de casa.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 18.09.2025 - 09h15min.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

EMPURRADO PELO ABSURDO

 


EMPURRADO PELO ABSURDO


Dois ovos pela manhã e... hããã... O homem pensou. Pensou. Estava desanimado para dizer como tinha sido seu desjejum. Com a demora, o médico tentou apressar a consulta:

— O que mais?

— Na próxima vez eu digo — respondeu o homem. — Por hoje, já falei demais.

E saiu sem sequer dizer "até logo".

Lá na frente, lembrou-se do bolso de trás: o celular. Havia deixado no consultório. Contara noventa e oito passos — valia a pena voltar, e foi o que fez. Ele tinha a mania de contar os passos; porém, na volta, nem se lembrou disso.

“Meu celular... Deixei em cima do birô do médico.”

Foram procurar.

— Não encontramos. Compre outro — disse a recepcionista.

O injustiçado ficou sem provas para chamar a polícia, e seu pensamento esbarrou num assunto que fugia totalmente do contexto: qual a diferença entre crocodilos, jacarés e aligátores? Se estivesse com o celular, iria pesquisar.

Já se encontrava na calçada quando a mesma recepcionista que mandara comprar outro o chamou:

— Tome. Estava debaixo da cadeira da sala de espera.

Ele pensou em dizer: “Quer casar comigo?”, mas preferiu ficar somente no:

— Muito obrigado.

Caminhou um pouco e encontrou um boteco na esquina. Havia três homens jogando cartas numa mesa; garrafa de pinga e tira-gosto, em outra.

— Posso pegar uma dose?

— Não!

— Por quê?

— Porque depois da pinga, você vai querer um pedaço de frango, vai se meter no jogo e vai sair com a cara quebrada. Para evitar tudo isso, é melhor não — disse o jogador que se achava o porta-voz do grupo.

O dono do bar afinava o violão. Ao vê-lo se encostar no balcão, perguntou:

— Canta alguma coisa?

— Dê um ré maior.

Logo no início da canção, o jogador olhou em sua direção e refez a fala: 

— Quando terminar, pode vir pegar a pinga.

Aplaudido, ele foi para a mesa dos jogadores. Duas horas depois, a profecia se cumpriu: levantou-se do meio da rua com o nariz sangrando. Bateu a poeira, pensou em se vingar, mas resolveu ir embora.

Desorientado, entrou na primeira porta aberta que encontrou: uma biblioteca pública com pouca movimentação. Folheou alguns livros como quem está interessado em pesquisar. Deparou-se com a frase: “A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago.” Além da frase, o título do livro também o deixou intrigado. O que significa factótum?

Pesquisou e descobriu: era uma pessoa que fazia de tudo.

"Será que sou um factótum?", pensou.

Retirou o livro da estante e sentou-se à mesa de leitura.

Logo depois, uma jovem se aproximou com uma braçada de livros.

Ao levantar a vista, ela não se conteve:

— O senhor está sangrando. Quer ajuda?

— Sofri um acidente na igreja. Estava arrumando o altar e uma estátua caiu no meu rosto.

— Vamos para a minha casa. É aqui pertinho.

Ela o pegou pelo braço e lhe proporcionou banho quente, curativo, lanche e cama.

— Durma um pouco. O senhor precisa descansar.

Ele obedeceu.

Vieram os sonhos. Ele estava montado em um cavalo preto, numa noite sem luar, à beira-mar. Cavalgava por entre duas barreiras d’água — lembrando Moisés — e de repente os paredões se fecharam.

Acordou com a polícia jogando um balde d’água em seu rosto.

— Está preso!

— Qual foi o meu crime?

— O senhor profanou uma igreja.

— Não, não fui eu.

— Esse rosto cheio de curativos é a prova.

— Eu menti. Isso é o resultado de uma surra lá no bar.

Os policiais viraram fumaça — era um sonho dentro de outro.

Voltou para cima do cavalo e, num piscar de olhos, a praia transformou-se em um deserto de neve, com uma matilha de lobos em seu encalço. Alguns animais alcançaram o cavalo; contudo, um homem passou montado em um tigre e o salvou.

Durante a viagem pelas montanhas, conversaram sobre a salvação da alma.

— E o corpo? Também pode ser salvo?

— O corpo não existe. Tudo isso é fruto do funcionamento dos órgãos dos sentidos, que atuam dia e noite para sustentar uma falsa existência. Se deixarem de funcionar, você deixará de existir.

Acordou com pressão na bexiga. Como seria bom não sentir mais dor. No banheiro, fez o que tinha que fazer, além de...

A jovem bateu na porta.

— Está na hora de o senhor ir embora.

— Vou já — respondeu ele.

Abriu a porta do banheiro e dirigiu-se para a sala de estar.

— Aconteceu alguma coisa?

— O meu marido está para chegar, e ele não vai gostar de ver o senhor furtando os sonhos dele.

— Eu não furtei nada. 

— Aqueles sonhos fazem parte do repertório daquela cama. Ele comprou a cama, os lençóis, os travesseiros — e os sonhos vieram como brinde. Se o senhor não for embora, ele vai lançar, sobre o senhor, os antigos pesadelos que guarda no subconsciente. E aí o senhor vai saber o que é sofrimento.

— Como você sabia que eu estava sonhando?

— Usei a paranormalidade aperfeiçoada para vasculhar sua mente enquanto dormia. Vá!

Dito isso, ela o empurrou de porta afora. Ele não manifestou nenhuma reação contrária, pois aquela moça, enquanto ele dormia, havia furtado todas as suas memórias, deixando-o indefeso. 


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 15.09.2025 - 17h40min.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

ESPIONAGEM ULTRASSECRETA

 


ESPIONAGEM ULTRASSECRETA


— Chegou?

A mulher entrou com um “sim”, empurrando o carrinho de compras.

— Conte as novidades! — exclamou o marido, interrompendo a leitura da obra Crônica do Pássaro de Corda.

Ela caminhou até o escritório, deixando o carrinho ao lado da pia limpa. O início de setembro, com ventanias e chuvas finas, o fez fechar portas e janelas.

— Aqui está frio — disse ele, tentando justificar o calor que fazia ali dentro.

— É, como sempre, você se enfurnando nessa sua caverna.

Ela o chamava, de forma carinhosa, de "Homem de Neandertal", por ele gostar de viver isolado e ser rude. Era uma brincadeira recorrente entre eles, reforçada pelas diferenças de temperatura entre os dois: ele sempre com frio, ela sempre com calor.


Na convivência do casal, essas disparidades térmicas já eram rotina. Ele acreditava que seus ancestrais tinham vindo do Polo Norte, enquanto os dela, da África. As divergências climáticas ainda rendiam discussões acaloradas, mas sem maiores impactos no relacionamento.

— Chutei um grilo que estava na entrada da nossa porta — comentou ela, deitando-se no sofá do escritório.

— Deve ter sido o mesmo que escutei ontem à noite — respondeu ele, tirando os olhos do computador para encará-la. 


Nesse ínterim, homens de preto subiram até o andar deles e recolheram o grilo que ela havia chutado. O porteiro nem percebeu como aqueles homens entraram e saíram; só se lembra de que, em determinado momento, desmaiou por causa de um cheiro forte que saiu de uma caixa de delivery de pizza.


Enquanto conversavam, ela fez uma pausa, mergulhada em lembranças da feira daquele dia. Lá, uma feirante a havia alertado:

— Moça, este carroceiro é doido.

— Eita, e agora, o que faço para dispensá-lo?

— Deixe comigo. Ei, carroceiro! O primo dela vem pegar as frutas.

Sem pestanejar, a feirante e o filho retiraram os sacos da carroça. A situação a fez rir por dentro, embora não demonstrasse.


Ao notar a distração da esposa, o marido voltou para o computador e deu continuidade ao artigo que estava lendo. Na publicação,  um renomado físico atômico defendia que: "Em uma perspectiva teórica que considera os princípios da relatividade, especialmente a reversibilidade das equações fundamentais da física no tempo, é possível especular que o processo que levou à formação de estruturas complexas — como o Big Bang originando o universo — também poderia, em condições extremas e inversas, permitir a condensação de matéria organizada em formas distintas e improváveis. Assim, levando essa ideia ao limite e tratando os átomos como entidades reorganizáveis dentro das leis da física, pode-se hipotetizar que os átomos que compõem um ser humano poderiam, teoricamente, ser reconfigurados e condensados de maneira ordenada até assumirem a forma e a funcionalidade biológica de um grilo". 


Quando percebeu que o marido estava muito concentrado,  ela o interrompeu, pedindo uma “audiência”. Assim chamavam, em tom de brincadeira, os momentos em que queriam conversar com mais seriedade. Ele se virou, curioso, e ela prosseguiu:

— Ontem à noite, acordei sentindo que algo estranho acontecia. Você estava dormindo aqui no escritório, como sempre faz de madrugada. Acendi a lâmpada e percebi o colchão com manchas vermelhas.

— De onde teria vindo o sangue?

— Eu também pensei que fosse um sangramento, porém percebi, ao cheirar, tratar-se de suco de beterraba, que derramei sem querer ao me deitar.


Riram da situação e, como de costume, a conversa derivou para temas variados: terrorismo, meio ambiente... até que voltaram a falar da família.

— Acho que vou acompanhar minha mãe na consulta.

— E é preciso?

— Claro. Ela omite o fato de que está se esquecendo.

— Deve ser esquecimento o fato de ela não dizer que esquece.

A decisão estava tomada. Durante a ligação, tentou convencer a mãe:

— Mãe, nós vamos entrar com a senhora para falar com o médico sobre como a senhora está.

— Você quer é aparecer — respondeu a mãe, com uma gargalhada tensa, como se dissesse: "Deixe de ser besta, que eu não estou demente."

— Eu vou pagar sua consulta. Mesmo assim, não tenho o direito de acompanhá-la?

— Tudo bem, pelo menos você faz esse pequeno passeio — cedeu ela, após a insistência do filho. 


Na semana seguinte, a “procissão” — como a mãe apelidara o grupo que a acompanhava — entrou no consultório. O filho tomou a palavra:

— Doutor, ela está muito esquecida e dorme mal.

— É sua mentira — retrucou ela, com o semblante carregado.

Enquanto a consulta prosseguia, a mãe, nervosa, negava tudo e batia os dedos nas próprias pernas. O médico, paciente, checava a ficha da paciente,  enquanto o filho, aproveitando o silêncio,  chamou a atenção da mãe para que ela tivesse um relacionamento mais respeitoso com a empregada. 

— Eu nunca gritei com ela.

— Já, e não foi só uma vez, não. E acabe com essa conversa de chamar a neta dela de “negrinha”.

O bate-boca durou mais de meia hora, até que o médico encerrou:

— Tome este remédio três vezes ao dia.

— Ela corta os comprimidos em quatro e só toma um pedaço — denunciou o filho.

— A senhora deve tomar conforme a receita, retomar a fisioterapia e usar sandálias ortopédicas — finalizou o médico, apertando a mão do filho e desejando-lhes boa sorte. 


Após a consulta, foram ao estacionamento e, por acaso, ele percebeu um parafuso preso no pneu dianteiro.

— Olha só! Só pode ter sido naquela rua onde, há bastante tempo, três pneus furaram ao passarmos por lá.

— Lembro-me — assentiu a esposa, acrescentando que lá sempre haveria armadilhas: pregos, parafusos, cacos de vidro...


Os compromissos urgentes tiveram que esperar, pois a borracharia era o destino mais adequado naquela situação. Lá, decidiram encher os pneus com nitrogênio.

— Essa molécula tem uma ligação tripla muito forte e curta. Por isso, o pneu cheio de nitrogênio não vaza com facilidade — explicou o borracheiro, ao terminar o serviço.


A esposa não tinha descanso: além da feira e da frota de veículos, também administrava corridas de camelo num hipódromo onde árabes exibiam seus animais enfeitados com túnicas douradas avaliadas em milhões. O marido, por sua vez, cuidava das apostas, desde que as chuvas artificiais entraram no portfólio de serviços do deserto.


No dia seguinte, a esposa viajou com a sogra para o interior. No caminho, seu carro foi interceptado pelos guerrilheiros que exigiam reparação financeira pelos danos causados ao agente secreto disfarçado de grilo, que ela havia maltratado.


Heraldo Lins Marinho Dantas – Natal/RN, 11.09.2025 – 22h21min.

sábado, 6 de setembro de 2025

A DOR QUE NÃO VIRA FOTO



A DOR QUE NÃO VIRA FOTO

 

— Acorde para viajar. Lá se foi ela com três volumes nas mãos em direção ao trabalho. Mora em uma cidade e trabalha a mais de cem quilômetros de distância. Pega táxi, ônibus, moto e chega.

— Leve dinheiro, disse o marido enquanto ela se arrumava. Desde os sete anos, precisa correr atrás da sobrevivência. Antes era a mãe no "Está na hora da escola". Ainda bem que amou tanto os pretensos filhos que preferiu seguir à risca a frase de Brás Cubas: "Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria". 

— Será que nunca vou ficar livre dessa trabalheira?, pergunta-se uma outra ao subir o rio para ganhar a vida. Hoje em dia, conquistou um barco a motor para substituir braços e remos. Na adolescência, precisava jogar a corda nas amarras do vapor e subir com um tabuleiro de cocadas. Assédio, furto, piadas maliciosas — tudo suportado com um sorriso por fora e choro por dentro. 

As duas, dentre milhões, seguem a rotina de acordar para trabalhar e trabalhar para dormir com o estômago menos vazio. Se fossem prostitutas, teriam outra carga de responsabilidade: fazer exames, sorrir, beber, fumar, enxugar as lágrimas — em segredo, de preferência no banheiro, sozinhas — e, depois de certo tempo, dizer que a vida tinha sido cruel com elas.

Passaram-se anos e a aposentadoria chegou, trazendo um marido inválido para cuidar, e o outro para ser lembrado no Dia de Finados. Olham para a memória e sentem a mesma sensação de um dever nunca cumprido. Ainda não terminou, observam-se, fazendo projeções econômicas. Contratar uma diarista e tomar sopa no shopping seria um sonho, seguindo recomendações do psiquiatra que ignora a real situação financeira das pacientes. Para qual das duas? Para quase todas pertencentes ao universo feminino. Poderiam incluir uma sessão de cinema, além da diarista e do prato de sopa? Deixe-me ver. Hum, ficaria sem recursos para o deslocamento até o hospital, caso precise. Uma garrafa de vinho? É desejo inalcançável para quem ganha pouco.

Poderiam nunca mais assistir a vídeos mostrando modos de vida acima do padrão, mas precisam estar antenadas, mesmo sabendo da distância medida pela geração de renda.

Ainda bem que o vento e o sol secaram as roupas do varal sem taxa nem boleto. Vai pular o almoço. As frutas precisam ser consumidas; além de economizar gás, economiza também o detergente da lavagem dos pratos e ainda ganha tempo para tricotar o par de meias encomendado, mesmo que amanhã sinta-se esgotada. 

Uma outra, com coroa de brilhante na cabeça, olha para a da lata d’água no mesmo lugar. Os objetos definindo quem chora e quem ri. A mãe da lata diz adeus ao próprio tempo, acorda de madrugada, divide migalhas e deixa o recém-nascido morrer de causa aparentemente natural. Coroa não traz a salvação. Com esse argumento, sentem-se conformadas, sem se dar conta dos conceitos criados com o objetivo de mantê-las no conformismo.

Sempre estiveram presas em pensamentos de sutiã folgado, calcinha apertada, DIU, creme, cabelos, corrimento, carência... Como é difícil administrar um corpo feminino, e mais difícil ainda é antecipar-se aos eventos hormonais. Têm prazo de validade para brincar, namorar, parir e partir. Isso as deixa aflitas.

— Você não é mais mulher! Como se a maternidade separasse a menina da idosa e, nesse meio, o que realmente importasse fosse o interesse redobrado dos agentes fertilizadores.

A mulher que caminha devagar na garagem da clínica olha de lado com a bolsa à tiracolo, vindo do ginecologista. Daqui a pouco vai à academia, cabeleireiro, chá das cinco... Vida perfeita, se não fosse arrastar a mãe idosa com algumas síndromes características de muitos janeiros comemorados. — Será que ninguém está totalmente feliz?, pergunta-se ao pisar na sandália que acaba de se partir. Um pé em cima, outro embaixo. — O que irão pensar de mim?, perguntou-se depois de se ver livre dos calçados. Uma mulher da alta roda, andando descalça. Só espero que meu marido não esteja usando a frigideira de porcelana para fritar ovos. O problema é que não suporto homem na minha cozinha.

— Quem é você?, pergunta sua mãe sem nem saber o que está fazendo dentro daquele carro automático. 

— Sou sua filha, Elisabeth.

— Ah!, é Betinha! Ainda me lembro. Onde está sua irmã?

— Sou sua filha única — respondeu pela centésima vez só nesta semana. A mãe esquece de tudo, porém ainda acredita que o aborto, no início do casamento, não aconteceu. A filha bem-criada desce para a loja de sandálias; estava calçada com as da acompanhante da mãe. 

— Fiquem aí que já volto!

A acompanhante dá um suspiro de alívio. Já não aguenta conviver naquela família onde tudo que se faz há comentários sobre o custo. Deve ser para que não peça aumento. Se deixar esse emprego, vai ter que voltar a catar latinha na rua. Pelo menos aqui não enfrenta o sol nem tem que se prostituir com o dono do armazém — pensa ao limpar a baba descendo no canto da boca da senhorinha.

— Tive que comprar essa para você. A sua, joguei na lixeira da loja. A demora foi porque eu estava justificando que havia pegado emprestado da empregada. Se não comprasse esse par de sandálias extra, iam ficar pensando que era mentira. A acompanhante recebeu o presente com desconfiança 

— Acho que ela vai descontar no meu salário.

No elevador, deram de cara com a senhora do décimo quinto. Cumprimentaram-se.

— Parece que quando estou apressada, o elevador não anda. Pior do que a sandália quebrada foi subir com a gringa reclamando do horário. Aquela vizinha é proprietária de uma agência de viagem. Vive distante da sua terra natal e adotou um companheiro casado, com idade de ser filho dela. O zelador contou que ela sustenta a família do empregado-amante.

— Quem está usando quem? — ficou sem resposta a pergunta do senso comum.

No trajeto, a estrangeira pensa na família que deixou além-fronteira. Depois de conseguir enterrar o pai e a mãe, achou por bem ficar longe dos irmãos. Traficantes de mulheres — podia ser que a raptassem para seus bordéis. Aqui, pelo menos, ela tem um certo domínio da situação.

As clientes entraram na van. Passaram o ano inteiro economizando para conhecer as dunas.

— Que sol maravilhoso! — comentaram ao se sentarem juntas no banco do meio. Durante a viagem, passaram por um homem enchendo, na torneira, garrafões de água mineral; cães deitados, esperando que dois da mesma espécie se separassem da cópula; um sujeito correndo atrás da peruca também foi visto descendo a ladeira da ventania.

Na praia, alugaram outro veículo para o passeio. Fizeram fotos juntas em frente a nomes grandes e coloridos para postarem nas redes. Ainda bem que o odor de urina perto da frase "AMO ESTA PRAIA" não foi registrado pela câmera. 

— Temos que almoçar.

No restaurante, havia uma garçonete que as atendeu no mesmo idioma. Ela havia sido babá no país de origem das clientes e, depois de um certo tempo, recebeu notícias de casa e precisou retornar para tomar conta do restaurante. Sua mãe, ainda de vestido preto, permanecia no comando da cozinha.

Era um pequeno negócio de família, e ela, como a única filha viva, não quis perder a oportunidade de comandá-lo. Sua experiência em terras distantes a fez trazer uma porção de beterraba e cenoura cruas, servindo como cortesia da casa — costume de onde as clientes vinham.

No pequeno palco do restaurante, a cantora homenageia as visitantes com Let It Be. Sua voz macia não a isentou da mancha na blusa decotada. Pausa para trocar de roupa. O filho de três meses ficou em casa. Havia acordado de madrugada para armazenar o excedente do leite materno. Mesmo assim, não tem como evitar que escorra a cada hora que o bebê deve se alimentar.

— Artista também sofre — pensou ao voltar para o palco, tendo consciência da ligação existente entre ela e o filho, expressa pela nódoa na blusa.

 

Heraldo Lins Marinho Dantas – Natal/RN, 06.09.2025 - 08h48min.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, MINHA GRATIDÃO (Gilberto Cardoso dos Santos)

 


 

A LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, MINHA GRATIDÃO

(Gilberto Cardoso dos Santos)

 

Vocês não fazem ideia do quanto Luís Fernando Veríssimo foi importante em minha formação e carreira.

Não corri muito, é verdade, não fui muito longe, mas se dei algum passo  gigante para mim, teve muito a ver com Luís Fernando Veríssimo.

Acertadíssima foi a decisão da Editora Ática quando, na década de 70, lançou a coleção “Crônicas para gostar de ler”, livros que traziam textos dele. Foi através dessa coleção que entrei em contato com sua escrita, e foi encanto à primeira vista.

Para gostar de ler, nada melhor que seus textos curtos, concisos e bem-humorados. Não à toa, ele se destacava entre os escritores que compunham as coletâneas.

Durante o curso de Letras e de Especialização, vez por outra um professor trazia algo dele para nossa análise e a aula se tornava excelente. Nas apresentações em grupo do Mestrado, lembro-me de uma colega que trabalhou a crônica “Aquilo”, e o texto virou mote para diversas piadas internas durante o restante do curso. A dita mestranda ganhou o carinhoso apelido de Quequinha, advindo da crônica "Inimigos", finalizada pelo pronome "aquilo".

Mas foi através do filólogo Celso Pedro Luft, em seu livro “Língua e Liberdade” que descobri ser Luís Fernando Veríssimo bem mais que um semeador de riso. Trata-se de um ensaio em que Luft toma como base a crônica “O gigolô das palavras” e a disseca com o respeito de um pregador que faz exegese de um capítulo bíblico. Nesse texto, excepcionalmente, sem pretensão primária de fazer o leitor rir, Veríssimo fala de si mesmo e relata um episódio envolvendo alunos que foram entrevistá-lo a respeito da importância da aprendizagem de regras gramaticais. Nada é supérfluo neste relato e cada linha merece reflexão. O ensaio, do começo ao fim, parafraseia e tenta explicar e ratificar o que disse o cronista.

Não foi pequena a surpresa ver Luft, um autor de gramáticas, dando aval a um texto que, aparentemente, minimiza a importância do ensino tradicional. Mas ele não se limita a ridicularizar estratégias ineficazes. Aponta caminhos. Esta crônica, recomendada e analisada por Luft, deu-me um norte quanto às práticas de ensino.

Não apenas isso: diante de alunos com pouco ou nenhum interesse pela leitura, vez por outra recorria a Veríssimo. Sempre obtive êxito em captar a atenção ao trazer textos dele. A crônica “O lixo”, por exemplo. Fazia apostilas com ela e outras. Por se tratar de um texto dialogado, eu dava oportunidade para que alunos assumissem as vozes e apresentassem a conversa para o restante da turma. Os mais tímidos criavam coragem e também queriam participar. O texto era lido à exaustão e seria repetido em aulas subsequentes, se dependesse deles.

Ao optar por livros didáticos, deparar-me com textos dele era um importante fator, pois sabia do impacto que teriam eles na aprendizagem.

Em busca de fruição literária, sempre que recorri a esse autor, não me decepcionei. Li muita coisa dele, inclusive alguns romances. Em praticamente tudo que li, no mínimo dei boas risadas e me surpreendi com a criatividade.

Por todas estas razões, encerro reiterando o que laconicamente expressei no título: Obrigado, LFV! Você disse que morreria sem poder realizar seu sonho de não morrer nunca. No entanto, continuará a viver no coração de seus milhões de leitores, na memória daqueles em quem despertou o gosto pela leitura. Grato sou por sua contribuição para que me tornasse escritor. Minha gratidão por ter me permitido ver o mundo sob sua ótica e por retratar a vida com tanta leveza e profundidade. D.E.P!


Gilberto Cardoso dos Santos

Contatos do autor: Fone 84 999017248;  Gmail, Instagram e Facebook: gcarsantos


Livros de Gilberto Cardoso

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

SINFONIA DO COTIDIANO

 


SINFONIA DO COTIDIANO


Levantou-se tateando pelo quarto escuro. Os olhos sujos viram uma pequena claridade pela janela. Chutou a cama. Soltou um palavrão, junto com o trabalho de esfregar o dedo mindinho.

Acendeu a lâmpada do banheiro. Vou comer, já que perdi o sono. Louça suja na pia. Na geladeira, restos de frutas processadas foram ingeridos com um pouco de mel. O bistrô, servindo de única mesa da casa, agora estava afastado da varanda e coberto com uma toalha curta, onde ele sentou-se e colocou o copo.

O alarme soou. Hora de desligar o fogo. Quando será que aprenderei a descascar ovo cozido? Sentiu ódio de estar limitado por uma frágil película. Pouco sal, recomendara o nutricionista.

Dizem que os bilionários lavam louça como terapia, pensou enquanto fazia o mesmo. Tinha costume de falar sozinho, mas, depois de visitar uma mesa branca, disseram que aquilo era a presença de um ser oculto. Quanta asneira, disse para si por não acreditar naquilo.

Lembrou-se dos sonhos que o visitaram. Trabalhava num circo. Acordou e ficou relembrando o sonho. Seu lado artístico não o deixava em paz. O criminoso nunca mais havia se manifestado, deve ser porque está dormindo sentado, pensou enquanto ligava o piano elétrico.

Tentou acertar as notas de Love Story uma centena de vezes, duas... Diminua o andamento, disse baixinho para si. O erro vem da sua incapacidade de impedir que o pensamento voe para outras paragens.

Levantou-se aborrecido por não controlar as oscilações das ideias. Estava nervoso. Tomou seus comprimidos diários quando o sol já dizia para apagar a luz do estúdio. Sentou-se para escrever. Quando está desorientado, busca aprumar a rotina através da escrita.

Seu olhar deparou-se com uma lata de tinta posicionada num canto da bancada. Pensou em olhar a data de validade, porém sua disposição em permanecer sentado falou mais alto do que a mania em querer saber a idade de tudo.

Deitou-se cansado de tentar acertar o dedilhado. Colocou um documentário para mascarar o barulho da rua e pegou no sono novamente. Está sempre com déficit de sono. Suas ideias o levavam a virar dias sem dormir, e depois esmorecia como se não tivesse força nem para caminhar até a sala. 

Acordou com a disposição de acabar de vez com a secura na boca. Suas ex-mulheres haviam lhe dito que já não aguentavam mais seus roncos de boca aberta. Só restava a ideia de amarrar os dentes superiores aos inferiores. Tentou e deu certo. Cortou o fio dental e prometeu amarrá-los à noite. Suas noites de sono eram terríveis.

Saiu para a audição. Lá estava a plateia aplaudindo de pé seus improvisos. Só o que sabia fazer bem. Começava uma música e, por tédio, partia para o improviso. A baixista parou de tocar para ouvir as variações e ver seu sorriso estampado quando entrava em transe, deixando também o baterista confuso.

As pessoas subiram no palco para aplaudi-lo com um aperto de mão. Conversa daqui e de lá, uma garota ficou por perto. Sou sua fã. Que tal uma aula de como improvisar? Sim, pode ser hoje. A noite foi além dos improvisos.

Estava sozinho novamente. Volta e meia, deparava-se com uma formiga. Dessa vez, na rosca de um frasco de soro fisiológico. Só pode ser perseguição. Passou o lençol matando-a. Certificou-se que o inseto havia sumido e despejou o soro no nariz, seguindo a orientação médica. Precisava lavar três vezes ao dia. 

Sentiu-se triste. Foi atrás dos motivos. Ah, sim! Não conseguia ficar a esmo. Sentou-se para executar o planejado. Até às doze horas, leitura. Depois, quem sabe, um filme, jantar, improviso. Voltou para casa com a sensação de quem estava boiando. Sem churrascos ou encontros esportivos. A garota ficou de ligar...

Resolveu limpar o BiPAP. Vontade de voltar a fumar, mas sabe que seria mais prejuízo. Fez um vídeo desmontando o aparelho para não errar na montagem depois da lavagem semanal. Colocou o lixo fora, estendeu a roupa. Dizem que quem mora sozinho é porque ninguém aguenta estar por perto. Nem ele mesmo se aguenta.

Passaram-se três dias. A garota do piano ligou. Quero que veja meus improvisos. Encontraram-se na casa show. Ele estava agendado para aquela noite. Ela ficou ao lado, no outro piano. Mandou bem. Uma garrafa de vinho foi aberta no camarim. Quer que eu vá com você novamente? Haja improviso.

Na manhã seguinte, apenas um bilhete: Adorei sua companhia. Vou esperar sua ligação. Levantou-se e se agasalhou. Daqui a pouco o dia esquenta. Precisava de uma roupa de frio. Seu salário estava sem fôlego para chegar ao final do mês. Como iria conseguir substituir seu casaco surrado?

Aquela garota esteticista está me deixando louco. Arrumou-se e foi para a drenagem linfática. É naquele momento que se sente um rei. Hoje teremos um atraso. Odeia quando há atraso. Isso lembra seu raciocínio lento. Foi chamado. Enquanto ela passava creme, ele viajava pelas suas mãos. Segure aqui. O objeto transmite choque das pontas dos dedos dela para o seu rosto. O único momento de estresse. Vontade de abraçá-la, levar para o altar; todavia, seria a décima sétima mulher. Conteve-se e, pela primeira vez, foi embora, sem assediá-la.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 01.09.2025 - 16h04min.

domingo, 24 de agosto de 2025

A CABEÇA-COSMOS

 


A CABEÇA-COSMOS


Para a maioria, uma colher de inox seria apenas isso, mas para ela: O metal veio do Brasil ou da China? Alguém precisou escavar a terra, arrancar esse minério da rocha com máquinas barulhentas. Quantas pessoas se envolveram para que essa colher estivesse aqui agora?

Ela apertou a colher contra o polegar. Lisa, fria. Como moldaram isso? Teve um forno gigante. Provavelmente um trabalhador suando próximo às chamas, cuidando para que o molde saísse perfeito. E depois a prensa... o polimento...

Imaginou o engenheiro que desenhou a curvatura ideal do cabo — quem sabe, até odiasse sopa, usasse cueca samba-canção ou tivesse orelhas de abano. Visualizou a reunião de marketing que decidiu qual embalagem faria essa colher parecer mais chique. Pensou na mulher da linha de montagem que empacotou o talher, com uma mão calejada, ouvindo rádio, menstruada, sem nem se dar conta de que o produto do seu trabalho estava indo parar numa cozinha do outro lado do planeta.

Mariana, então, lembrou que precisava apenas mexer o café. Só isso. Mas, ao olhar para o líquido escuro no fundo da xícara, começou tudo de novo: a plantação de café, o agricultor, a chuva, o solo, a logística.

Pensar era um espetáculo mental constante e inevitável. Enquanto uns viviam, ela destrinchava. Queria ver o mundo como ele é — e não como ele foi, ou poderia ter sido.

Entre um gole e outro, percebeu que, no meio do caos mental, havia uma forma de poesia. Porque, ao exagerar no pensamento, Mariana transformava qualquer objeto banal em um universo inteiro, perguntando-se se era assim com todo mundo. Será que as pessoas também paravam diante de uma pedra na rua e pensavam em placas tectônicas e eras geológicas? Ou será que todo mundo apenas chutava a pedra e seguia o caminho? Era uma dúvida que nunca perguntava, com medo de descobrir que ela era uma das que viviam mais na hipótese do que na prática.

Na faculdade, os professores diziam que ela enxergava demais. Mariana até que tentava ser rápida, prática, eficiente, porém era como colocar um oceano dentro de um copo: acabava transbordando.

Uma vez, chorou olhando um botão de camisa, desses simples, de plástico branco. Imaginou a fábrica que o produziu, o plástico que um dia foi petróleo que estava embaixo do mar, por milênios. E agora ali, no chão do quarto, esquecido. Pensou em como tudo que existe é o fim de uma longa cadeia de coisas que não vemos, e isso a comovia mais do que deveria.

As pessoas diziam que ela era um tipo de telescópio voltado para dentro. Enquanto todos olhavam para fora, ela descia camada por camada nas coisas simples, até encontrar o mistério escondido ali. Era uma arqueóloga do cotidiano. Embora se cansasse desse pensar constante, também não saberia viver de outro jeito.

Naquela noite, ao escovar os dentes, se pegou encarando a escova como se fosse um monumento. E lá foi ela de novo: o plástico colorido, as cerdas, a indústria, o marketing, o design anatômico, o flúor, o dentista, o capitalismo. Riu sozinha. Pensar demais era solitário, mas também uma forma de companhia, porque, em sua mente, tudo ganhava história.

Por mais que tentasse escapar, a mente era um rio sem comportas, por isso que Mariana escrevia. Nos cadernos empilhados em sua estante moravam as palavras que o mundo não ouvia. Era ali que ela guardava o excesso de realidade que via nas coisas. Cada linha era um desabafo disfarçado de descrição.

Poucos entendiam seu jeito. Os amigos a chamavam de “intensa”. Já os antigos amores costumavam se afastar depois de um tempo, como quem percebe que está diante de um espelho que mostra demais. Você complica o simples, diziam, mas Mariana nunca achou o mundo simples. E talvez fosse exatamente a recusa em aceitar que as coisas "são só o que são" o que a tornava tão complexa.

Certa vez, num encontro, pegou-se olhando fixamente para uma taça de vinho enquanto o pretenso namorado falava. Ela via o vidro como um milagre: areia derretida, moldada, resfriada; o vinho, um líquido de uvas fermentadas, cultivadas sob sol, colhidas por mãos, pisadas talvez ainda como nos tempos antigos. Aquele gole continha civilizações. Terminou o encontro sozinha.

Mesmo assim, Mariana seguia. E, no fundo, não queria curar-se desse "exagero". Porque pensar demais era, para ela, uma forma de amar as coisas pequenas, os detalhes invisíveis, os fios que conectam o agora a tudo que veio antes. Viver sem pensar seria mais leve, sim, mas também mais raso. E Mariana, com toda sua profundidade silenciosa, sabia que nascera para mergulhar — mesmo que fosse no fundo de uma colher.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24.08.2025 - 08h17min.



terça-feira, 19 de agosto de 2025

A LIBERDADE PASSA PELO NARIZ

 


A LIBERDADE PASSA PELO NARIZ


Respirar. Nem se pensa como fazer, até que, um dia, o ar começa a disputar espaço com um desvio de septo, e então o que antes era tão fácil vira um desafio. O ar some quando mais se precisa e, quando aparece, é só pela metade.

Entre consultas e exames, percebi que viver estava difícil e, nessa luta com rounds contados em segundos, aprendi que o automático nem sempre é garantido. Foram anos convivendo com o barulho do sono. Dormir? Só de lado e com um travesseiro estrategicamente posicionado. No fundo, eu já nem lembrava como era respirar com os dois lados do nariz funcionando. A gente se acostuma com cada coisa…

Até que, um dia: "Vamos operar." A cirurgia foi marcada. Confesso que passei a semana anterior me despedindo da minha rotina barulhenta e dos lenços de papel, que já eram quase parte do meu vestuário.

No dia do procedimento, acordei com o nariz entupido por dentro e por fora. Um curativo enorme, uma sensação de ter sido atropelado por um rinoceronte.

— Pronto, seu Heraldo, foi tudo bem.

A voz do anestesista foi se distanciando. Ouvi ainda:

— Aquela área do Copacabana Palace ficou ótima.

Imaginei que era o diálogo do médico com a cirurgiã assistente. Essa é a conversa da elite. Imaginei como ficariam as técnicas de enfermagem ouvindo que aqueles que faziam parte da equipe estavam passando os feriados no hotel mais famoso do Brasil, e elas, pegando o busão superlotado todo final de noite, rumo à zona norte.

— E agora? — perguntei, como se estivesse participando de um torneio.

Ninguém respondeu. Aquelas vozes em alvoroço foram se dissipando. Eu estava consciente em uma cama do centro cirúrgico e ninguém falava comigo. Comecei dialogando com meu ego. Não era delírio. Era vontade de falar com alguém.

— Estou aqui esperando — disse em voz alta.

— E daí? Sua vida sempre foi esperar — eu disse a mim mesmo, tentando sair daquela sessão torturante.

Parece que o inconsciente se revolta por ter sido tratado como objeto, durante mais de duas horas sentindo o corpo sendo cortado, iluminado por três holofotes com 84 lâmpadas LED cada, lembrando um disco voador. Só o tlim tlim dos instrumentos cirúrgicos sendo arrumados. A indiferença do restante da equipe doía mais do que os cortes de bisturi.

A televisão aliviou-me quando cheguei ao apartamento para recuperação. Da maca para a cama, lençol sem que eu precisasse fazer esforço. Fiquei sozinho com a acompanhante.

Os dias seguintes foram dignos de uma novela dramática: nada de assoar o nariz. Dormi com travesseiro de avião para não virar de lado. Até uma algema de tecido idealizei para evitar meter a mão no curativo tampando a cara. Mas, lá pela segunda semana, veio o momento. Tiraram os curativos. Respirei fundo — e, pela primeira vez em anos, o ar veio suave, democrático. Confesso que me emocionei a ponto de querer...

— Não chore — disse a enfermeira.

— Esse é o respirar de um recém-nascido — completou o médico.

Antibióticos, assepsia quatro vezes ao dia, alimentos líquidos, pastosos...

Massagem para drenar o inchaço. A esteticista, com seus dedos de fada, me fez pensar se eu merecia todo aquele cuidado.

— Não importa se você merece — respondi a mim mesmo —, o que importa é que vencemos a guerra contra a escassez de ar.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.08.2025 - 09h40min.

sábado, 16 de agosto de 2025

O ALIMENTO DA MENTE (Washington Ribeiro, Hélio Crisanto e Gilberto Cardoso)


Quando uma entrevistadora perguntou a Washington Ribeiro, grande poeta e cordelista de Barcelona, RN, qual a importância do trabalho dele para a sociedade, ouviu a significativa resposta: 

"Sou produtor de alimento que a boca da mente come."

O poeta Hélio Crisanto viu a riqueza do pensamento e percebeu que o aforisma já nascera com a estrutura de mote. Não resistiu ao impulso de glosá-lo.



Eu também ousei fazer uma estrofe com base nele.













quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O SOM DA SOLIDÃO

 


O SOM DA SOLIDÃO 


Vim para o sítio em busca de sossego, porém as galinhas cacarejando, chocalhos batendo e zurros de hora em hora fizeram-me sentir saudade de canos de escape pipocando. Quando minha sogra varria o terreiro com disciplina quase militar, essas galinhas não sujavam o alpendre. Agora, o chão vive coberto de penas, milho espalhado e fezes secando ao sol.


Hoje, percebo que o silêncio que eu idealizava era, na verdade, um cenário montado pela lembrança seletiva da memória. O sossego do sítio é barulhento à sua maneira, e a desordem das galinhas reflete a ausência daquela mulher com vassoura firme nas mãos e um chicote no ombro. Sem ela, o terreiro perdeu seu ritmo, e eu, minha ilusão de tranquilidade.


Quanta saudade sinto do café coando antes do sol subir. Hoje, os sons são outros. Sento no alpendre e percebo que, sem os que se foram, o sítio virou uma moldura sem quadro.


Eu sempre vinha aos domingos olhar o açude sangrar. Aquele verde acima do joelho, fez-me comprar botas compridas.  Cobras passeavam pelos nossos pés que dava medo ir além da porteira. Metade da casa de Maria Bombaca foi ao chão. Abandonada, já não precisa de chave nem fechadura levada pelos mais necessitados. 


O mato tomou conta do quintal onde antes havia roseiras, e o vento agora assovia nas memórias de um tempo que se desmancha no barro rachado do açude. As goiabeiras morreram e ninguém mais plantou coqueirais. Olho para aquilo tudo e relembro Antônio Tripa na garupa do jumento com barris indo buscar água no açude. Suas brigas de boca com Wilson são memoráveis. A primeira vez que vi Antônio,  tive um baita susto. Parecia um homem das cavernas. Seu queixo saliente, cabelos desgrenhados,  andar puxando uma perna e uma boca enorme sem dentes deixava passar palavrões que ecoavam na serra. O sangue daquele rosto chupado parecia saltar quando avistava seu rival passeando do outro lado da cerca. Seus olhos rodeados de olheiras, davam a impressão de uma banqueta cavada no minério de ferro com água cristalina ao fundo. 


- Não abandonem Antônio,  dizia tia Tereza antes de partir, vítima de pressão alta. Antônio morreu cego e mijado em um quartinho na casa de Ozir, sem nenhum controle sobre sua micção.


Outro dia, encontrei no galpão uma sela velha coberta de pó e cupim. Chutei. Pensei em levar para a cidade, restaurar, dar algum uso, mas logo vi que aquilo pertencia a outro mundo. 


De noite, o breu é tão espesso que parece ter peso. As lamparinas queimam mais mosquitos do que iluminam, e o barulho das rãs toma conta do silêncio. Ouço passos no terreiro, madeira rangendo, algum sussurro vindo da casa vazia de Maria Bombaca, mas sei que é só a cabeça pregando peça. Aqui, a solidão fala tão alto que qualquer sombra vira uma boa companhia.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 06.08.2025 - 16h41min.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

ESTANTES SEM AFETO

 


ESTANTES SEM AFETO 

Depois de um dia de trabalho, o prisioneiro das oito horas chega à casa. Em cada canto, um livro que utiliza como abrigo contra a realidade que detesta. Entre as estantes, reencontra o “Penso, logo existo”, e é nesse pensamento que sente sua existência pulsar com mais verdade. Ali, no silêncio cúmplice das páginas, ele tenta se refazer. 

Senta-se no sofá, lembrando da empolgação quando lhe enviam livros que nunca leu, como quem espera uma promessa de salvação impressa. Hoje, ele terminou mais um. Quanta decepção por ter gostado de algo tão óbvio quanto histórias envolvendo fragilidades humanas.

Volta-se para a solidão longe da mulher divorciada. No início, ficou felicíssimo em não precisar fechar a porta do banheiro. Agora, os personagens que lhe faziam companhia também lhe deram as costas. Os livros, que antes serviam de consolo, acusam-no de abandono. A liberdade que tanto sonhou revelou-se um cárcere. Lembra-se de Sartre: “O inferno são os outros”, mas ele começou a desconfiar de que o inferno, na verdade, é a ausência deles.

Esquenta umas batatas, relembrando a chuva na feira; a vendedora gritando promoção; o carroceiro atropelando quem se mete em seu caminho; e o homem de um só discurso sobre o medo que sente em ser traído. São histórias que acompanham aqueles tubérculos. Aí pode estar a razão da existência humana: histórias para serem comidas juntas ao sal da memória. Cada batata carrega uma conversa atravessada no tempo. A vida talvez seja um prato morno de lembranças que, mesmo requentadas, ainda nutrem a alma com algum sentido.

Tinha a riqueza em suas mãos, mas não se dava conta. Quantas vezes trancava-se no quarto em busca da leitura silenciosa. A mulher enfiava-se entre ele e o livro em busca da sua atenção, e ele a expulsava. Queria degustar ideias longe dos assuntos familiares: uma fechadura sem funcionar, a marcação da consulta ou a necessidade de um fatiador de cenouras — tudo isso lhe aborrecia. Achava-se superior por manter diálogos com Dostoiévski, mas era incapaz de perceber o drama existencial ali, de avental e colher de pau, pedindo ajuda com o fogão. Enquanto buscava sentido nos livros, a vida lhe oferecia páginas vivas — e ele, cego de arrogância, virou a cara. Só depois, no silêncio do abandono, entendeu que algumas histórias interessantes estavam no grito que ele se recusou a ouvir.

Chegou a hora de dormir. A cama vazia lhe dá a sensação de final de guerra. Disparos verbais, interrupções do pensamento, o lugar ocupado na pia — não mais existem. Ele está com total liberdade para usufruir, porém falta-lhe a essência que lhe faz um ser social.

A ausência da mulher está influenciando-o mais que qualquer obra literária. A paz conquistada veio com o preço da solidão, e agora ele entende que até os conflitos tinham o propósito de lembrá-lo de que era um Homo sapiens. Dormir virou sinônimo de espera pela volta daquilo que ele deixou escapar, pensando ser um incômodo.

Amanhã, o sol o encontrará com o olho sujo de lembranças que se recusam a partir. O alarme, empurrando-o para mais uma jornada de trabalho, despertou. Levanta-se cabisbaixo, querendo ser o chinelo que o aguardava aos pés da cama. Já não tem sentido abrir os pacotes que se amontoam no chão da sala. Caminha para o banheiro. Tem medo de ver no espelho um estranho que ocupa sua vida sem pedir licença. Lava o rosto, querendo que a água leve embora aquela alma carente. E então fecha-se dentro de si e vai para o trânsito ocupar o lugar de mais um sem rosto na multidão.  

Heraldo Lins Marinho Dantas 
Natal/RN, 30.07.2025 - 06h30min.