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terça-feira, 13 de maio de 2025

FUMAÇA FILOSÓFICA









FUMAÇA FILOSÓFICA


Ontem, viajei pelo universo. O motivo da viagem foi que um amigo me pediu notícias dos pais — mortos há mais de dez anos. Saí em busca dos velhos por esse universo sem fim, como um radar à procura de alvos. Percorri léguas e mais léguas, certo de que logo os encontraria. No meio do nada, estavam os dois ao lado de uma fogueira.

Estacionei. Desci do sono, e eles permaneceram olhando o fogo. Naquele momento, percebi que o divertimento deles era aquele. Estavam em transe, como o viciado em vídeos olhando para a tela. Aproximei-me. Tentei contato, mas não houve manifestação cordial, até que ouvi um: sente-se. Sentei-me, e também fui levado a olhar o crepitar das almas penadas, assando sem gritos ou murmúrios.

Passei momentos observando como é a vida na morte, pois nada havia para fazer de melhor. Nem senti vontade de perguntar como estavam. Eles estavam, e pronto. Deu para perceber: estavam totalmente satisfeitos com a morte que levavam.

Não havia chão como o conhecemos. Tudo estava fixado no vácuo. O que chamamos de tudo, na verdade, era nada. Só havia eles, eu, a fogueira e o resto traduzido em infinito. Dentro do fogo, sim, existia uma verdadeira cidade: pessoas olhando a hora sem tirar os olhos para outra serventia. A hora estava fazendo hora naquela cidade de desapressados. Nem o vento tinha pressa. Chegava em formato de brisa. Perguntei-me se aquilo era a alma do furacão, mas pouco interessava. O conhecimento sobre isso ou aquilo também havia morrido.

Na cidade dos mortos, o divertimento era contar piadas envolvendo pressa. Uma piada durava muito. Até dizer “vou contar” já era motivo de boas gargalhadas. Contar pra quê?, perguntavam-se uns aos outros. Ele quer contar uma piada kkkkkkkk... Ninguém estava interessado em chegar ao fim de alguma coisa, pois, pelo que entendi, eles eram a própria finalização de tudo que achamos que existe.

Riam do tempo que perderam acreditando que tinham uma missão na Terra. Essa era a piada mais clássica vivenciada por todos. Lembram-se dos prazos a serem cumpridos? Nesse momento, quem passou correndo foi o atraso, acompanhado pela tradição e pelos bons costumes. Lá, eles têm formato de heresia, se é que me entendem. Eu poderia descrever como se apresenta a heresia, mas, como fazem os bem resolvidos: pra quê eu explicar?

Fiquei um montão de vezes olhando ao redor. Falei "vezes" no lugar de "tempo" porque lá se mede por quantidade de vezes que se faz algo. O tempo vive aposentado por não ter serventia; por isso, a medida é: as vezes — sem crase mesmo.

Falei com um escritor que tentava concluir um livro. Deixe ele, disseram-me os pais. Ele chegou há poucas vezes, e é necessário muitas vezes para que ele se conscientize de que esse vício de escrever só atrapalhará sua morte. Jamais ele ficará sem vezes se persistir nesse trabalho. Cada vez que tentar fazer algo, mais vezes serão criadas.

Logo depois, um coro de poetas começou a declamar versos invertidos, começando pelo ponto final e terminando com a dúvida. Ninguém pediu explicação. Declame mais!, diziam os desocupados. Vocês entenderam?, perguntavam os poetas, aflitos com tanta cara de paisagem. Pouco importa a mensagem, respondiam os ouvintes. O que importa é o moído.

Despedi-me de todos, e a pergunta que fizeram foi: quando você quer morrer?

Como assim?, indaguei.

É que só percebemos que a morte depende da vontade de cada um, quando morremos.

Pedi explicações e me falaram que cada pessoa começa a planejar a morte quando se dá conta dos cabelos brancos, as rugas, as dores por toda a alma e corpo, e é aí que se opta pelo paraíso de viver sem pressa.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 13.05.2025 — 09h03min.



Um comentário:

  1. Um texto que nos faz refletir sobre a vida, a morte e o tempo, com imagens fortes e uma atmosfera etérea. Gostei da forma como o autor retrata a tranquilidade dos mortos e a inutilidade da pressa!

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