FÉ PÓS-MODERNA
O sono está chegando sem que eu precise comprá-lo na farmácia. Já são tantas horas da madrugada, e eu aqui, esperando-o, pronto para aceitar sua ação sem questionar. Lá fora, o silêncio é quebrado por um ronco de motor transportando alguém sentado; aqui dentro, eu me ocupo com as dúvidas existenciais estimuladas pelas notícias da nossa espécie: uns com gripe forte, outras com bebês reborn, brincando de boneca depois dos cinquenta.
Assustei-me ao ver a perfeição dos bonecos, acalentados como se crianças fossem. Pesquisei os pontos de vista de ambos os lados e cheguei à conclusão de que os pets agora irão perder espaço para esse mascote de estimação que não suja. São inofensivos, mas têm um alto grau terapêutico.
A crise de ansiedade agora conta com esse remédio. Que bonito é ver pessoas neurastênicas amaciadas pelos bonecos. Essa tendência milenar está tomando um novo patamar diante do assemelhamento com seres pensantes. Muita gente acha essa nova moda um absurdo, mas será apenas questão de tempo até nos adaptarmos — assim como nos adaptamos à adoração de imagens gigantescas no alto de morros. A Esfinge de Gizé é um exemplo clássico dessa infantilidade. Qual é a diferença entre uma imagem idolatrada por muitos e outra endeusada de forma particular? Os bebês reborn estão no mesmo patamar — ou estou enganado? Não se pode ser hipócrita a ponto de diferenciá-los. Cães são levados para passear no shopping enquanto parentes apodrecem num quarto fedendo a urina. Mas isso pode, ou seja, pode tudo — inclusive adorar bonecos.
Agora, mais leis serão criadas para proteger os bebês reborn, como já existem contra a discriminação de objetos usados em práticas religiosas. É crime atentar contra sentimentos religiosos, e, daqui a pouco, será crime jogar um boneco no lixo.
Dias desses, visitei uma tia que recolhe imagens religiosas jogadas fora por ex-católicos. Depois que esses cristãos transferem o dízimo do padre para o pastor, a primeira coisa que fazem é descartar os personagens do oratório. “Os bichinhos não fazem mal a ninguém”, dizia titia, olhando para a coleção que mantém nas prateleiras.
No Rio de Janeiro — cidade que ainda dita nossa cultura —, a Câmara Municipal aprovou um projeto que institui o Dia da Cegonha Reborn no calendário oficial da cidade. A coisa é séria, tão séria que muitos advogados estão se especializando para defender com quem fica a guarda desses bonecos em uma possível separação judicial.
Recentemente, fui convidado para ser padrinho do casamento do meu amigo com Cleópatra — não a rainha do Egito, mas sua boneca inflável. Confesso que fiquei honrado, embora um pouco inseguro sobre qual traje seria adequado: terno, fantasia de faraó ou capa de sanidade.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 16.05.2025 – 02h53min.
O texto "Fé Pós-Moderna", é uma crônica provocativa e brilhantemente irônica, que conduz o leitor a uma reflexão profunda sobre os rumos da nossa sociedade contemporânea. Com uma linguagem fluida e sensível, o autor mistura o cotidiano ao insólito de maneira inteligente, expondo com sutileza os absurdos normalizados em nome do conforto emocional e das novas crenças pós-modernas. O humor ácido, a crítica social embutida e o olhar perspicaz sobre comportamentos aparentemente banais tornam o texto não apenas atual, mas necessário. É uma leitura que nos tira do automático e nos convida a pensar — e isso é mérito de poucos.
ResponderExcluirHeraldo, apresenta uma crítica social instigante, mas que por vezes escorrega em uma generalização excessiva e numa ironia que beira o escárnio. Embora o humor ácido seja uma ferramenta válida para provocar reflexão, em alguns trechos ele se aproxima de um tom de desprezo pelas práticas e crenças alheias — como no paralelo entre os bebês reborn e imagens religiosas ou no comentário final sobre casamento com bonecas infláveis.
ResponderExcluirAlém disso, o texto carece de um fio condutor mais coeso: salta de reflexões sobre o sono e o silêncio da madrugada para críticas sociais e religiosas, passando por comentários sobre saúde mental e legislação, o que pode causar certa dispersão temática. A crítica à modernidade é válida, mas poderia ganhar mais força se fosse mais focada e menos caricatural.
Por fim, embora a escrita seja fluente e criativa, em alguns momentos o texto parece mais preocupado em chocar do que em construir um argumento sólido, o que pode limitar seu impacto reflexivo em leitores que buscam mais profundidade e menos ironia como recurso principal.
No mundo da fantasia, nasceu sem dor
ResponderExcluirUm boneco tão perfeito, que imita até o amor.
Não mama, não chora, não sente,
Mas preenche a vida de muitas carentes.
Com olhos de vidro e pele macia,
Traz consolo no fim do dia.
Chamam-no de reborn, bebê de ilusão,
Mas quem o abraça, sente emoção.
Uns dizem que é loucura
Outros veem nele alma pura
Se é mentira, pouco importa afinal,
O que vale é o afeto mesmo artificial.