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segunda-feira, 14 de julho de 2025

CLAVE DA MEMÓRIA - Valdenides Cabral

 


CLAVE DA MEMÓRIA

Valdenides Cabral

 

Como de costume, rompia a aurora à beira do fogão. Braseiro estalando, água fervendo, cheiro de café espalhado pelas meias paredes da casa. Levava café no quarto para minha mãe, depois saía para o curral, arreios ao ombro. Leite quentinho, espumoso, bezerro mugindo, amarrado às patas traseiras da mãe e meu coração partido.

Hora de colocar o leite na desnatadeira, separar a nata de fazer a manteiga do leite que vai virar coalhada, que vai virar queijo, pirão de queijo. Todas as paragens lactanciais revirando a minha cabecinha de vento, pés encrustrados naquele chão de cascalhos, tal diamantes em anel de princesa. Eu, a princesa de um reino sem castelo, sem joias, sem vestidos, costurada nos sonhos de uma colcha de retalhos.

Meninos, o café está na mesa. Batata doce quentinha regada com manteiga da terra, café com leite, cuscuz. Pão só aos domingos. Às tardes, mãe fazia orelha de vó. Tínhamos a felicidade da meninice ao nosso alcance, espraiada pelos tabuleiros quase sempre secos. Nunca faltou uma lagarta de fogo para fazermos de boi, nem uma lagartixa morta para acrescentarmos mais uma cruz no cemitério da nossa propriedade imaginária. Carrapeta feita do fruto da favela, galinhas, do fruto do pereiro. Brincávamos sombreados pelas cercas de avelozes que circundavam o terreiro de casa. Cuidado com esse leite, meninos, se pega nos olhos, cega.

À noite, iguarias plantadas no sítio eram servidas: coalhada, arroz de leite, batata doce, jerimum. Carne era escassa, só para os dias de visitas. Aos sábados, religiosamente, comíamos bode torrado e aos domingos, galinha caipira.

Para as noites de lua, cadeiras de balanço na calçada e os olhos presos na bolandeira, nas Três Marias, no Sete-Estrelo, no Cruzeiro do Sul. Minha velha, mais um ano ruim de inverno. Quietinha, saía direto para o oratório de São José. Que meu pai não queime xiquexique mais um ano, meu Santo!.

 

3 comentários:

  1. SERTÃO ENCANTADO
    1.
    O braseiro esquenta a água
    Com o café se misturando
    Quem acorda se anima
    Com o cheiro se espalhando
    A aurora grita: acordem!
    Um a um chegam na ordem
    Uns em pé, outros sentando.

    2.
    O dia já começando
    Com um produto cremoso
    Na disputa com bezerro
    Pelo quente e espumoso
    O leite tirado a mão
    Saudades no coração
    Daquele tempo Gostoso.

    3.
    Vivíamos em pleno gozo
    Com coalhada e rapadura
    Manteiga, pirão de queijo
    Liberdade com candura
    O vento levando a rosa
    O odor junto com prosa
    E a vida com doçura

    4.
    A princesa com ternura
    Num castelo de alegria
    Retalhos de diamante
    Transformando noite em dia
    Todo o chão acolchoado
    No reino do bem-amado
    Era aquilo que ela via

    5.
    Batata com melancia
    Aos domingos tinha pão
    Orelha de vó é comida
    Nesse querido sertão
    Cuscuz nunca faltava
    Ovos mamãe cozinhava
    E às vezes tinha pirão.

    6.
    Pertinho ali do oitão
    Ficávamos de brincadeira
    Lagarta de fogo era boi
    Num carro de macaxeira
    Um pião improvisado
    Já vinha pré-fabricado
    Do fruto da faveleira.




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