CLAVE DA MEMÓRIA
Valdenides Cabral
Como de costume, rompia a aurora à beira do fogão. Braseiro estalando, água fervendo, cheiro de café espalhado pelas meias paredes da casa. Levava café no quarto para minha mãe, depois saía para o curral, arreios ao ombro. Leite quentinho, espumoso, bezerro mugindo, amarrado às patas traseiras da mãe e meu coração partido.
Hora de colocar o leite na desnatadeira, separar a nata de fazer a manteiga do leite que vai virar coalhada, que vai virar queijo, pirão de queijo. Todas as paragens lactanciais revirando a minha cabecinha de vento, pés encrustrados naquele chão de cascalhos, tal diamantes em anel de princesa. Eu, a princesa de um reino sem castelo, sem joias, sem vestidos, costurada nos sonhos de uma colcha de retalhos.
Meninos, o café está na mesa. Batata doce quentinha regada com manteiga da terra, café com leite, cuscuz. Pão só aos domingos. Às tardes, mãe fazia orelha de vó. Tínhamos a felicidade da meninice ao nosso alcance, espraiada pelos tabuleiros quase sempre secos. Nunca faltou uma lagarta de fogo para fazermos de boi, nem uma lagartixa morta para acrescentarmos mais uma cruz no cemitério da nossa propriedade imaginária. Carrapeta feita do fruto da favela, galinhas, do fruto do pereiro. Brincávamos sombreados pelas cercas de avelozes que circundavam o terreiro de casa. Cuidado com esse leite, meninos, se pega nos olhos, cega.
À noite, iguarias plantadas no sítio eram servidas: coalhada, arroz de leite, batata doce, jerimum. Carne era escassa, só para os dias de visitas. Aos sábados, religiosamente, comíamos bode torrado e aos domingos, galinha caipira.
Para as noites de lua, cadeiras de balanço na calçada e os olhos presos na bolandeira, nas Três Marias, no Sete-Estrelo, no Cruzeiro do Sul. Minha velha, mais um ano ruim de inverno. Quietinha, saía direto para o oratório de São José. Que meu pai não queime xiquexique mais um ano, meu Santo!.
SERTÃO ENCANTADO
ResponderExcluir1.
O braseiro esquenta a água
Com o café se misturando
Quem acorda se anima
Com o cheiro se espalhando
A aurora grita: acordem!
Um a um chegam na ordem
Uns em pé, outros sentando.
2.
O dia já começando
Com um produto cremoso
Na disputa com bezerro
Pelo quente e espumoso
O leite tirado a mão
Saudades no coração
Daquele tempo Gostoso.
3.
Vivíamos em pleno gozo
Com coalhada e rapadura
Manteiga, pirão de queijo
Liberdade com candura
O vento levando a rosa
O odor junto com prosa
E a vida com doçura
4.
A princesa com ternura
Num castelo de alegria
Retalhos de diamante
Transformando noite em dia
Todo o chão acolchoado
No reino do bem-amado
Era aquilo que ela via
5.
Batata com melancia
Aos domingos tinha pão
Orelha de vó é comida
Nesse querido sertão
Cuscuz nunca faltava
Ovos mamãe cozinhava
E às vezes tinha pirão.
6.
Pertinho ali do oitão
Ficávamos de brincadeira
Lagarta de fogo era boi
Num carro de macaxeira
Um pião improvisado
Já vinha pré-fabricado
Do fruto da faveleira.
Muito bom, Heraldo! - Gilberto Cardoso
ExcluirQue lindo! Obrigada.
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