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domingo, 7 de julho de 2024

ORÇAMENTO VIGIADO

 


ORÇAMENTO VIGIADO


Não tem pressa, por isso resolve cavar de dentro para fora quebrando o padrão "pelas beiras". Uma colher pequena para sentir aos poucos o prazer de degustar canjica quente naquela manhã fria. 

No horizonte, um branco neve impede o sol de dar o seu costumaz espetáculo. Fica com a consciência pesada ao perceber que cada colherada daria para alimentar um formigueiro inteiro. Ah!, se fosse daquele tamanho. Esse pensamento é passageiro, pois a mulher lhe chama a atenção abrindo a porta para mais uma feira-livre com seus "me lembrei agora". 

Ela entra e sai por várias vezes para confirmar o transtorno obsessivo-compulsivo presente em quem passa a vida cozinhando, lavando, passando, sem perceber o tempo lhe agregando manias. Um rato viria a calhar naquela cozinha pisada de banha de porco, mas foi só um pensamento fortuito depois que uma lata seca despencou de cima da tábua de enxugar carne. 

A canjica no prato demonstra seu formato semelhante a um relógio de parede sem ponteiros. Hoje é dia de abandonar as horas e o amanhã surgirá com a síndrome da segunda-feira, ele pensa olhando para o rolo marrom do papel-toalha que acabara de acabar. A língua passando por fora do perímetro da boca, limpa o que antes seria tarefa daquele. 

A mulher chega à feira uma hora depois de ter pensado no rato. Dora a recebe com um sorriso de cigarro entre os dentes e algumas frases de efeito: claro que os salgadinhos são de hoje, e mesmo que não fossem, eu ia dizer, era? 

O marido lhe encomendou comprimidos para a virose. Já chega de uma semana toda sem poder se aproximar do aconchego com essa tosse de galinha com gôgo.

A comida esfriou no finalzinho da caçarola, por isso ele dá uma pausa indo ver um vídeo de chuva enviado pela mulher. Levanta-se da mesa com o prato que tem a capacidade de aterrissar junto às colheres, garfos e frigideiras quase por si só. 

A filha adolescente vem à cozinha guiada pela força do estômago vazio. Nessa hora, a vaidade esconde-se por trás dos cabelos despenteados e olhos sujos.  Ela encontra o restos frios.O gato lhe observa sem miar. O pai está farto desse gato e o espanta com um safanão enquanto a menina nem se dá conta que o animal de estimação continua sujando por onde passa.

Olha o horizonte sem-horizonte e vai para a leitura de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" admirando-se quando lê um detalhe percebido pelo protagonista de que "uma formiga morde a perna de uma mosca."

Na feira-livre, ninguém consegue vender nem comprar com tanta chuva. Os vendedores de cocadas não apareceram com receio que seus produtos se transformassem em geleia. O rapaz que pega frete coça a ferida causada pela pedrada estilingada ao subia no poste para furtar fio. Ninguém está deixando barato ver as linhas telefônicas sem sinal por capricho de drogados. 

A muvuca dá uma trégua para que os riachos passem com seus lixos rua abaixo, e eles, vendedores de frutas e verduras, observam os raros clientes que se aventuram naquela enxurrada. Pior é ser mineiro, pensa um que já trabalhou numa mina de carvão enfatizando que lá até o ar puro é difícil de se obter. Depois que inseriu em seu pensamento a expressão "ar puro" foi prontamente corrigido porque jamais existirá ar totalmente puro, já que o que se respira é uma mistura de substâncias.

As horas passam e alguns motoristas estacionam nas ruas próximas aproveitando o momento de estiagem para pechincharem. Os flanelinhas apontam o polegar para cima sem muito sucesso. Na rua da feira, ninguém dá gorjeta.

O filho ainda não se levantou. Ontem foi uma noite grandiosa para ele aos seis anos e com autismo à frente da orquestra sinfônica. Merece dormir um pouco mais, pensa o pai relembrando o tempo que também usava pijama. Não tolera mais esse modismo de ter uma roupa para cada momento. 

Hoje, "entrevista com o demônio" estreia só nos cinemas. Aproveitou e também pesquisou na internet alguns barzinhos funcionando, porém nada adequado por conhecer o modus operandi da chuva fechando locais abertos. Continuando navegando ao acaso, encontra ministro argentino propondo lei onde os pobres possam vender filhos. A que ponto chegamos, dizem os de esquerda para criticar a ideia corrente da direita. 

Na fila, encontra uma conhecida que tomava banho nua no quintal de casa mesmo sabendo que estava sendo espionada. Ele tenta suportar os gritos do neto dela, mas é impulsionado a ir sentar-se distante cem metros. Se você fosse o pai... eu colocaria uma coleira como se faz com os cães puxando-os aqui e acolá para me certificar que o investimento a longo prazo não estaria sendo ameaçado.

No final, toma o caminho de casa repleto de lembranças da  moça com as pernas de fora e do umbigo viajando no tanquinho branco acima da altura média. Chega de volta montado no sono da madrugada descarregando a roupa de festa onde deve permanecer na ordem da sequência de uso. O bate-papo prossegue na avaliação entusiasmada de ter saído um pouco da dura realidade de só servir para pagar boleto. Ainda bem que sobrou alguns trocados para a farra controlada do saco de pipoca. Chegam ao final da noite com a certeza anotada de que o ventilador pode girar além da conta, mas só hoje, viu?


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 07.07.2024 - 00h44min.

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