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quarta-feira, 26 de junho de 2024

APARENTE INOCÊNCIA



 APARENTE INOCÊNCIA 


O sol saiu com força. A borboleta colorida voa, aparentemente, sem destino. Tudo está harmonizado. Um raio de sol bate na janela acordando o homem com cabelos arrepiados e olhos cheios de nojo. A borboleta pousa e fica por ali mesmo. Ele olha para ela que retribui o olhar. Seus pensamentos ainda estão acordando de um sonho sem lembranças. Será que sonhou? A borboleta permanece fechando e abrindo as asas num ritual que só os lepidopterólogos entendem.

O sol ilumina a cena e muitas outras que nem cabem aqui. O homem sai, mas a borboleta fica. Ela tem que procriar e nem sabe o porquê disso. Já se alimentou num jardim ali pertinho e está no maior sossego.

O homem volta à cena já dentro do banheiro. Lugar sem graça com água vazando de várias fontes. A janela aceita mais uma borboleta. São duas da mesma espécie prontas para se deixarem tocar. O vento passa, suavemente, enxugando a umidade deixada pela madrugada. Um barulho estranho é ouvido vindo do banheiro. O vento para escutando o barulho e foge produzindo o mesmo som. 

As borboletas deixam de se mexer. Já foi aproveitado o momento de distração, agora é voar para outro acasalamento. O homem volta para a janela e encontra a mesma borboleta como se nada tivesse acontecido. O sol é impedido, pelas nuvens passantes, de jogar seus raios na janela. 

Uma gota d'água cai ali perto. Não tão perto que possa assustar a borboleta. Ela fica. Um grão de pó vai dentro da gota d'água caída há pouco. Bilhões de átomos estão juntos naquela gota e mais outras se juntam limpando a janela sem nenhuma mão de obra paga. 

A borboleta voa para se proteger da chuva, é fina, não resta dúvida, mas um abrigo é necessário. Ela não tem casa, por isso visita a dos outros. O homem observa aquela sem-teto pousar nas ripas do alpendre logo adiante. Ele não está só. 

Um gato ativo e esfomeado também observa aquele lindo petisco colorido. A chuva engrossa com barulhos parecidos com os ouvidos pelo vento. O gato passa a língua entre os dentes para evitar que a baba escorra no queixo. Ele ativa os olhos em direção à borboleta. 

O homem olha a chuva que constrói um caminho d'água na grama seca. O gato analisa como chegar até a presa. Já não há olhos observando a borboleta como se fosse algo que  embeleza o ambiente. Ela está no foco do predador. 

Uma cascavel observa o gato. A chuva permanece no jardim por poucos momentos deixando água empoçada. A Janela já não deixa passar a luz com tanta nitidez. A borboleta fecha as asas numa manobra de defesa contra a umidade fria que toma conta. 

O homem vai para a cozinha. Encontra ovos, pão, queijo e leite sendo fervido. Observa aquela com um menino no braço e relembra quando era ele aquele menino. Senta-se observando a colher de pau sendo alvo do olhar  do menino atento ao mexido. Já tem certeza de que daqui a pouco seu apetite será saciado. 

O gato não. Não tem certeza de nada, por isso analisa possíveis erros no ataque. A chuva dá uma trégua, mas o repique das gotas caindo ainda permanece. 

A cascavel se arrasta, de mansinho, em direção ao gato. Todos eles, movidos pelo estômago, agem como se tivessem direito de ceifar a vida um do outro. 

A chuva foi embora deixando para trás testemunhas da sua passagem escorrendo nos galhos. O vento retorna sem barulho. As folhas se balançam como estivessem se penteando ao jogar fora os pingos que permaneciam grudados. 

O desjejum é servido. A família come em silêncio. O homem se levanta e chega à porta que dá para o alpendre. Olha para a ripa onde estava a borboleta. O canto mais limpo. No chão, uma cascavel engole um gato com a borboleta na boca. O homem observa a cena sem interferir. Quem sabe, da próxima vez aquela cascavel pica a sua esposa e o filho que ele desconfia ser do vizinho.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 26.06.2024 - 08h11min.

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