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segunda-feira, 3 de junho de 2019

Análise de ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA (Por Domingos Cardoso)


Ensaio sobre a cegueira
José Saramago

[...]

Se há livros cuja leitura nos pode incomodar e deixar pouco
confortáveis este será, seguramente, um deles.

É verdade que nem todos os livros servem para nos
distrairmos apresentando-nos um mundo fácil, risonho onde
tudo é leve, agradável e prazenteiro, onde todas as
personagens são boas pessoas ou bem-intencionadas.

Como diz o poeta da canção, há sempre um lado lunar em
todas as pessoas (e coisas ou situações, acrescentaria eu…).

Porém, muito mais do que um lado lunar, o “Ensaio sobre a
cegueira” dá-nos uma visão caótica, dantesca, aterradora,
aflitiva, pessimista e arrepiante dum acontecimento
hipotético que nos deixa a pensar na maneira como
reagiríamos ou como nos comportaríamos se fossemos
submetidos a uma provação igual à que é narrada no livro.

Daí, o abanão nos ombros, a bofetada na cara, o murro no
estômago que sentimos durante a leitura destas mais de
trezentas páginas.

Suponho que, intencionalmente, as personagens não têm
nome próprio para mais facilmente as sentirmos
desumanizadas numa sucessão de vicissitudes que nos
incomodam, repugnam, causam nojo e, não raras vezes, nos
fazem dizer arrh…

É isto que dizemos quando imaginamos as personagens cegas
a fazerem o alívio matinal de escarros e ventosidades ou a
defecar, primeiro, nos corredores do manicómio e, depois,
nos passeios das ruas da cidade.

É este arrepio que sentimos quando imaginamos sermos nós
a pisar esses montes de excrementos, a tropeçar no lixo ou
nos animais mortos, a não termos água para nos lavarmos, a
cheirarmos a putrefacção dos cadáveres, a sermos
testemunhas de cenas escabrosas de sexo violento imposto
que, por não consentido, para além de aberrante, se torna
repugnante.

Este é um dos livros que dão razão a quem diz que uma
biblioteca é o lugar onde se pode perder a inocência sem
perder a virgindade.

Quero aqui declarar que não acredito que todos os cegos “de
longa data”, digamos assim, sejam, pessoas de má índole,
facínoras, ladras e perversas como as que nos são
apresentados por José Saramago.

E mesmo que as haja individualmente acho pouco provável
que se tenha reunido um tão grande grupo delas durante a
quarentena com propósitos tão desumanos e procedimentos
tão vis.

Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, reconforta saber
que o Autor os castigou com o fogo purificador dum
incêndio.

Sei perfeitamente que, dentro da ficção, tudo é permitido e
todos devemos esperar tudo. Mas nesta obra há momentos
em que nos parece impossível que pessoas cegas possam
executar a movimentação e ter a desenvoltura de movimentos
que são descritas o que nos leva a pôr em causa a
verossimilhança das descrições.

Inverossímil pode também considerar-se o facto de a mulher
do doutor continuar a ver, no meio daquela epidemia geral,
mas se tivesse ficado cega, como os outros, o Autor não teria
olhos para fazer a narração e não haveria história…

Da leitura feita quero guardar uma imagem e uma frase
colhidas, curiosamente, da mesma página: “Se os teus pais
voltarem, encontrarão dependurada no puxador da porta
uma madeixa, de quem poderia ela ser senão da filha,
perguntou a mulher do médico, Dás-me vontade de chorar,
disse a rapariga dos óculos escuros”.
Já a frase “O puxador da porta é a mão estendida de uma
casa” é das mais belas e mais profundas que encontrei em
todo o livro.
Para terminar gostaria que me dissessem qual a vossa
interpretação das frases finais da obra: “Depois levantou a
cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez,
pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda
ali estava”.
Afinal, a mulher do médico ficou cega ou não? Dado que a
cegueira se caracterizava pelo branco que os atingidos diziam
ter nos olhos, podemos concluir que sim, que ficou cega e
que, indiferente a esse triste facto, a cidade ainda ali continuava.
Por outro lado, somos levados a pensar que não, pois a
cidade ainda ali se encontrava, isto é, a mulher do médico
continuava a vê-la. Logo, não tinha ficado cega.




Janeiro de 2019





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