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terça-feira, 29 de setembro de 2015

O GALO E O PREÁ (APÓLOGO) - Prof. Dr. José da Luz Costa

O GALO E O PREÁ

(APÓLOGO)

Já faz alguns dias, num gabinete da cultura potiguar aconteceu um encontro inusitado. Dois representantes da fauna, um local e outro universal, pela primeira vez tomaram parte em um polêmico debate.
Um galo, eloquente porém magoado, desabafa:
 – Tudo isso é uma grave inversão de valores! Os agentes da modernidade manipulam mundos e fundos para edificar suas obras. Derrubam uma muralha para construir um muro.
Com um olhar inquieto, um preá, recostado no canto da sala, hesitava:
   Os tempos mudam... As pessoas, também.
   A mudança existe e é necessária. Mas, isso não significa substituir, destruir ou mesmo esquecer o valor das coisas.
   Você está ressentido, logo passa. Ninguém vai se lembrar de você. Então poderá viver em paz.
   Essa é boa! Um nanico provinciano querendo me levar na conversa. Você, enquanto cavídeo, não passa de um roedor bisonho e iletrado.
A discussão se avolumava. A substituição do galo pelo preá no único veículo oficial de divulgação das produções culturais do Estado gerou a celeuma. O preá, aparentando controle da situação, dizia:
   Meu objetivo é chegar aos grotões e de lá trazer informações, divulgar por lá o que se faz por aqui e carregar daqui notícias para lá.
   Que vexame! Você só repete bem o discurso dos outros. Mas jamais será um arauto. Revela-se um mero entregador, desnecessário até, porque o correio já faz esse serviço de entrega. Excelente serviço, por sinal.
   Não se trata disso, você entende...
   O que entendo é que um pequeno pretório de intelectuais, sem sintonia com leitores e eleitores, prelibaram-se em alterar o curso da História.
   Você dramatiza, amigo...
   Ora bolas! Você surge de uma moita qualquer, seduzido por um canto de sereia, e ainda quer ostentar memória e orgulho.
   Assim você me ofende...
   Que nada! Esta é sua verdadeira estirpe: de linhagem inglória, animal roedor, fugidio, que habita entre rochas e buracos de tabuleiros ermos e áridos, longe do convívio humano.
   Essa doeu, cara.
   Esta minha atitude reflete o descontentamento das pessoas em geral. Imagine se a cada novo governo, os administradores resolvessem erradicar as marcas do governo anterior. Aqui muda o nome de uma praça, ali de uma avenida, lá adiante o de uma escola, de um hospital, de uma ponte, até de um beco...  com o passar dos anos, essas plásticas descaracterizariam a identidade histórico-cultural da cidade. Tudo novo e efêmero!
   Amigo, seu discurso comove, mas não convence. Os idealizadores deste novo projeto viram em meu nome um novo paradigma, mais arrojado, moderno, ágil e de alta performance.
   Vejam só quem fala! Você me obriga a biografar sua triste sina. Apesar de origem tupi, seu nome – formado por um conjunto de fonemas, espremidos enfumaçados – soa sem melodia nem brilho. Para nascer, passasse pelas cirurgias gramaticais de síncope e aférese: apereá > pereá > preá. Nascesse com gênero incerto. Há quem diga que você é masculino, outros classificam como feminino.
   Sou parte da natureza, e na minha espécie existem machos e fêmeas.
   Tudo bem. Todo ser animal tem sua cara-metade. Mesmo assim, seu caso é complicado. Você mais parece um gênero unissex. 
A conversa seguia acirrada. O preá tentando preservar a própria face e a de seus pistolões políticos e intelectuais. O galo, por sua vez, não poupava críticas às atitudes do preá e de seus defensores. Assim, alegava que era uma ave doméstica, comestível, reprodutora, de briga, líder do quintal, de convívio amistoso entre os membros da casa. Seu gênero inequívoco – masculino – formava par romântico com a galinha, sua consorte. E não deixando arrefecer o ânimo combativo, arrematou:
– Caro preá, a minha história é uma epopéia. Lucrécio já dissera que o canto do galo assombra leão. Na Grécia e Roma antigas, tornaram-se famosas as lutas de galos. E vem de longe a tradição de me chamarem relógio dos pobres.
– Galo que fora de hora canta, cutelo na garganta! Sentenciou o preá.
  Você não passa de um roedor, pobre, pequeno e preguiçoso. Nas estórias populares, nos conta o grande Cascudo, você é retratado como um tipo de finório, intruso, aproveitador, penetra, dançando, comendo e bebendo sem convite.
  Tudo isso é folclore...
  Da lenda nasce a legenda. Reconheço que em tempos de seca, você vira boa caça para o sertanejo. Mas todo mundo sabe que um preá não faz um jantar. Há muita gente por aí que te deglute como tira-gosto em mesas de bar do interior, e às vezes só te encontrando em botequins de beira de estrada.
  Confesso que não esperava isso de você!...
  Não lhe estou faltando com a verdade. Eu vivo tão bem no campo como na cidade. Meu nome repercute sonoramente. Meu canto ritmado vem com o alvorecer, chamando os homens à labuta. Já disse um poeta que vários galos tecem uma manhã. Outro poeta local já escreveu: “No alto da abadia, / o galo do catavento / acende as cores do dia”. Além disso, lembre-se da missa do galo, celebrada pelo Papa.
   O que sei é que todos somos iguais perante a lei. Você teve sua chance, agora tenho a minha...
  Sei cá! As evidências têm demonstrado que todos são iguais perante a lei, mas não diante do juiz. E justiça boa e imediata só com um bom e bem pago advogado!
  Você está radicalizando...
  Ingênuo cavídeo, eu, o rei do quintal e do poleiro, não posso desperdiçar meu tempo e meu canto com um interlocutor arredio ao convívio social. Você virou apenas um parvenu, pois os ares da cidade não disfarçaram seus gestos burlescos e lamuriantes.
  Olha que o destino pesa implacavelmente sobre todos nós!...
  O meu destino é glorioso. Basta lembrar pra você que o Cristo admoestou a Pedro sobre as três negações do apóstolo antes de um irmão meu cantar na madrugada.
  Águas passadas não movem moinhos, você sabe...
  As águas passam, mas a história permanece. Infelizmente, parece que este postulado não foi considerado pelos seus projetistas. Deram-lhe uma roupagem nova, adornaram-lhe com uma virtual e refulgente armadura, para lhe afugentar os cães de caça e não deixar você morrer na cidade. Já que dizem nas redondezas que preá só vem à cidade morto. 
Como se percebe ao acompanhar esta narrativa, a conversa entre as rivais figuras da fauna cultural não foi nada harmoniosa. De um lado, um preá aperreado e reticente, mas desfrutando as benesses do novo cargo. Do outro, um galo, galante e retórico, argumentava ferrenhamente contra os expoentes da política local pelo golpe histórico desferido na memória cultural do povo e da terra potiguar.
  Amigo, na verdade as intenções são boas... procurava contornar o pacato preá.
  Não seja idiota! De boas intenções o inferno está cheio. Não vou baixar a crista, nem emudecer meu canto, mas lhe garanto: vou estar de esporão afiado para defender meu nome e minha honra. Pois, onde o galo canta, janta.
  Caro galináceo, deixe eu viver minha história. O sol brilha para todos.
  De sol e filosofia você não entende nada. Vive nos capinzais à beira de córregos e lagoas, saindo só ao anoitecer, para se alimentar de gramíneas. Enquanto eu compartilho da comida dos humanos. Sirvo-lhes de banquetes em festas de Natal, casamento e aniversário.
  Você sempre ironizando...
  Chega! A sorte está lançada. Espero que você não seja vítima de uma “preazada”, e vá passar o resto da vida solitário num buraco.

Esta história, ocorrida recentemente nesta cidade, foi-me contada por um amigo jornalista, que me segredou também ter passado a vida como um galo: no topo da cidade, tentando despertar os tolos do sono da ignorância e os sábios dos sonhos mirabolantes.


Zedaluz
Natal, junho/2003.
(publicado no Diário de Natal)


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