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sábado, 19 de setembro de 2015

O AVIÃO DE PAULO AFONSO - Luiz Berto



Essa história sucedeu−se tem muitos anos passados. Mas eu me lembro dela perfeitamente, e gravei aquele dia na memória para o resto da vida. Um dia incrível, apocalíptico, incomum.

Era manhã de semana, o mercado funcionando normalmente. As donas de casa já haviam comprado a carne e a verdura do almoço. Minha mãe temperava o guisado, enquanto nós jogávamos ximbra na rua.

De repente, um barulho tomou conta dos céus e passou a matraquear o espaço, como se anunciando a chegada da Besta Fubana a comandar o fim do mundo. Era um barulho desconhecido naquelas paragens, monótono, ritmado, ensurdecedor. Muito alto para a Palmares silenciosa de então.

Olhamos para o céu e nada enxergamos. Só escutávamos o barulho. Num segundo, a rua já estava cheia, e acredito que não havia um só vivente dentro de casa. Em um instante, rápido e mágico, ele surgiu por cima dos telhados e nos encheu os olhos. Um enorme helicóptero, com sua cauda metálica gradeada, a passear por sobre a cidade. Uma visão impressionante para as crianças, preocupante para os adultos e aterradora para os velhos, a pensar na chegada do Juízo Final.

− É um avião sem asas!

O barbeiro Babel, navalha em punho, a correr pela rua junto com um freguês ensaboado, garantia ser uma invasão estrangeira, vingança dos alemães derrotados na 2ª Grande Guerra.

O engenho voava devagar e, a cada manobra, ia arrastando a população de um lado para outro. Às vezes ele parava no ar e dava um descanso para o povo. Os pescoços se espichavam, as mãos na testa para proteger os olhos do sol. Os dois ocupantes olhavam para baixo mas não se conseguia decifrar suas feições.

Na Rua do Galo, algumas velhas puxavam um terço. Dona Ricardina, que morava na rua principal, aconselhava a vizinha:

− Num saia não. O Evangelho diz que quando os anjos chegarem tocando trombetas, quem tiver na rua, fique, quem tiver dentro de casa, num saia. Pode contar, que daqui a dez minutos vão vir os anjos. É o fim do mundo. Vamos rezar!

Mas os apavorados eram poucos, algumas velhas e beatas. Ajoelhados pelas calçadas, conclamavam a turba a rezar e se arrepender dos pecados. A maioria estava extasiada com as manobras do desconhecido engenho voador, olhos pregados no céu limpo e azul. Voando lentamente, o aparelho parecia um ímã, arrastando magneticamente a população de Palmares pelas ruas. Um rebuliço sem conta e sem tamanho.

Pelo menos, dois casos de mulheres nos dias e que pariram no susto foram registrados naquela manhã louca. Inúmeros os feijões queimados nas panelas de barro, pois as donas−de−casa se igualavam aos meninos e aos homens na suarenta corrida pelo rastro do avião sem asas. As pessoas se atropelavam, gritavam, subiam e desciam ladeiras, davam topadas nas pedras soltas do calçamento, sempre de olhos no aparelho. A esta altura, o piloto parecia se divertir, voando exatamente por sobre o traçado das ruas. O comércio fechou e todas as atividades rotineiras da cidade foram paralisadas. Salvo os velhos a rezar, ninguém ficou em casa.

O helicóptero pegou o rumo da Rodagem e seguiu em direção à Usina 13 de Maio. Ficou parado em cima do campo de futebol, enquanto a população tomava de assalto o gramado. Foi perdendo altura aos poucos, e o povo, adivinhando sua intenção, ia abrindo a roda e dando espaço para o pouso. Ao incrível barulho veio se juntar o vento provocado pelas hélices. Tocou de leve na grama. Os ferros, vivos e negros, junto com a maravilhosa visão do motor aparente, compunham um quadro impressionante.

Pousado, visto de perto, recém−chegado do céu, o aparelho ficava realçado em seu encanto. Místico, profético, apocalíptico, ali estava ele ainda rugindo.

A hélice foi diminuindo a velocidade, o povo ia fechando a roda. Os dois ocupantes pareciam assustados e preocupados. Uma camioneta da usina se aproximou com dois funcionários graduados. Houve uma ligeira conferência sob as hélices em funcionamento. A camioneta se afastou, e o ronco do pássaro se alteou. A este sinal, a roda se alargou novamente. Parecia se impando de força, e o povo recuou assustado. Alteou−se devagar e novamente ganhou os ares. Com pouco, estava lá em cima. Novamente a correria no rastro.

O helicóptero dirigiu−se à usina, e lá começou novamente a perder altura. Frustrada, a multidão o viu desaparecer por trás dos imensos muros da indústria. Sumiu e, com pouco, desligou os motores. Do lado de fora, a multidão, silenciosa e quieta, prestava atenção no silêncio e aguardava.

Um funcionário da usina explicava para alguns de que se tratava: tinham vindo inspecionar as linhas de transmissão que chegavam a Palmares para trazer a energia elétrica da Cachoeira de Paulo Afonso. E, então, o engenho foi imediatamente batizado: o Avião de Paulo Afonso.

Devagar, em procissão, a população foi voltando à cidade, entre comentários e conversas. Era tanta gente, que levantava poeira no arruado sem calçamento da usina.

Almoçou−se tarde naquele dia. Mas, ao seu final, a vida tinha voltado à normalidade.

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