O Básico
O que distingue o básico do
extraordinário? Essa distinção é necessária? É possível? Há uma
interdependência entre esses elementos? Comumente, costuma-se estabelecer
contrapontos quando lidamos com dados em perspectivas diferentes.
O básico e o extraordinário
seriam como a inspiração e a expiração que, num processo oposto e complementar,
são igualmente importantes para a manutenção da vida? No evangelho de Lucas,
capítulo 17, a fé é responsável pelo extraordinário: "Se vocês tivessem fé
do tamanho de uma semente de mostarda, poderiam dizer a esta amoreira:
'arranque-se daí, e plante-se no mar'. E ela obedeceria a vocês."
Na mesma parábola, temos o empregado
que obedece ao seu senhor, fazendo tudo o que lhe foi ordenado, sem exigência
alguma. Nesse contexto, a exemplo do empregado, também nos é feita a seguinte
solicitação: “quando tiverem cumprido tudo o que lhes mandaram fazer, digam: ‘Somos
empregados inúteis; porque fizemos apenas o que deveríamos fazer’.” Como
podemos observar, o empregado fez o básico, o trivial — ou melhor, apenas
seguiu ordens. E cada um de nós, no cotidiano de uma vida inteira, nos
rebelamos ou apenas cumprimos determinações? Pelo visto, a fé difundida no
evangelho de Lucas, capítulo 17, não permeia o dia a dia dos míseros seres.
Mesmo assim, nos deparamos com
sujeitos que, submergidos num ideário de crenças e movidos por elas, propagam
feitos excêntricos, mirabolantes. O básico, que tanto nos habita, preenchendo
espaço/tempo, nos impede de perceber que somos apenas servos inúteis. Em seus
versos, o pensador contemporâneo Raul Seixas, discorre, brilhantemente, sobre a
condição limitada do ser humano.
“[...] É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa 10% de sua cabeça animal.
E você ainda acredita
Que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social.”
(Raul Seixas)
O extraordinário se inicia pela
tomada de consciência de quem se é; da análise de possibilidades e limitações.
Conhecer, para amparar as debilidades, ressaltar as forças, formatar o
pensamento — dá sentido às palavras! Ideias bem construídas e embasadas se
transplantam, provocam transformações. “Quem come do fruto do conhecimento é
sempre expulso de algum paraíso.” (Melanie Klein)
As ideias
entrelaçadas constroem discursos, configuram ideologias. Quando uma figura
pública, ciente do poder ideológico de sua obra, faz um chamado, convoca para
uma mobilização — a exemplo de Caetano Veloso —, o que dá respaldo a essa
convocação não é a pessoa física, o sujeito, mas o conjunto de ideias
propagadas ao longo de sua carreira e a crença da identificação de muitos com
essas ideias. O paraíso da acomodação nos remete a estágios primários,
preliminares onde o outro é proprietário e você, alheio a si mesmo!
O extraordinário está contido na
subjetividade — fé, coragem, força, percepção, audácia, perspicácia, criação,
no mais que humano, no que extrapola, na dúvida, na polidez do ser.
Num cenário de devastação, a
exemplo das guerras, é muito significativa a constatação de que forças, crenças
e confiança no outro — até quando não se devia — ancoram pessoas, mesmo nas
condições mais inóspitas. Dos danos causados pelas guerras, os da alma são os
mais devastadores. Essas, mesmo dilaceradas, encontram amparo na esperança de
um novo dia, que se inicia a cada nascer do sol. O novo é sempre radiante e
promissor, um fertilizante próspero. Os senhores da guerra são ordinários
(xingamento). Extraordinário é o livro de Viktor Frankl — Em busca de
sentido.
Quantos adjetivos cabem num
olhar? Não sei mensurar. Os olhares, a depender da luz que emanam, podem ser
descritos como: olhar de admiração, de tristeza, de desejo, de censura,
indiferença, compaixão ou um olhar sem visão... Qual o alcance de um olhar? O
quão revelador esse olhar pode ser?
Ao descrever uma imagem, o
sujeito revela-se tanto quanto a configuração da imagem por ele captada. João
Gilberto, artista brasileiro, ao observar mulheres descendo o morro, falou: “Lá
vem o Brasil descendo!” O que podia ser um simples olhar revela a constatação
de meio século de história de uma nação (extraordinário).
“[...] Da sua escola é passista primeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
No equilíbrio da lata não é brincadeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira.”
(Moraes Moreira)
Nessa construção literária, o
poeta enobrece a força e a resistência de um povo que, através de seus
malabares, na arte da sobrevivência, resiste bravamente. O básico também é belo
— viva o povo brasileiro que desce e sobe ladeiras, num vai e vem sem fim!
Maria Goretti Borges
Parabéns pelo texto, gostei muito! Isso mesmo, a subjetividade movendo o mundo.
ResponderExcluirMuito obrigada, feliz que tenha gostado!
ExcluirMuito boa reflexão. O que move o mundo é a nossa capacidade de, por meio da palavra, materializar a experiência.
ResponderExcluirE você consegue muito bem, um exemplo de ser humano! 👏🏽
ExcluirQue texto rico e provocativo! Parabéns, Goretti, muitas ideias surgiram por aqui a partir dessa leitura.
ResponderExcluirFico feliz pela inspiração, muito obrigada! 🙏
ResponderExcluirGoretti, excelente texto, podemos caminhar com o básico e o extraordinário na construção contínua do ser humano, no desenvolvimento das suas capacidades, habilidades, ações… sem esquecer a subjetividade inerente ao humano. Como dissociar o básico do extraordinário?
ResponderExcluirMuito obrigada e parabéns pela sua análise, que tanto enriquece o debate.
ExcluirO “básico” é desprovido de sofisticação, é simples e elementar. O “extraordinário” está fora do comum sendo digno de admiração. Parabéns Goretti você e seus textos são extraordinários. Domingos Sávio
ResponderExcluirExtraordinário é ter um amigo como você! Muito obrigada pela gentileza.
ExcluirO extraordinário e o básico, ambos são importantes e necessários para uma vida plena e significativa. Parabéns! 👏👏
ResponderExcluirTambém penso assim, muito obrigada pela atenção e contribuição.
ExcluirOlá Goretti! Que belo texto… parabéns! Seu texto me surpreendeu quando você fala sobre o olhar, me identifiquei! Telma Rose
ResponderExcluirOi Telma! Muito obrigada pela atenção! Olhar diz muito, não é mesmo? Um abraço 🫂
ExcluirMuuuuito boa essa crônica, parabéns! Por coincidência a palavra de domingo foi esse cap. de Lucas. Dany Borges
ResponderExcluirMuito obrigada, Dany! Beijos
ExcluirUau! É muito bom ler o que você escreve, parabéns! Beijos. Maria Clara
ResponderExcluirMuito obrigada, Maria Clara! Um abraço 🫂
ExcluirO extraordinário do básico, ambos são importantes e necessários para uma vida plena e significativa. Ao encontrar um equilíbrio entre os dois, podemos viver uma vida mais autêntica e satisfatória. Parabéns minha amada, você é excepcional. Marliete Soares
ResponderExcluirMuito obrigada minha querida! É verdade, a beleza da vida reside nessa relação de troca e interação entre os diferentes, que são também complementares. “A vida é bela”! 😍
ExcluirParabéns Goretti!
ResponderExcluirMuito boa reflexão, literalmente o novo é radiante e extraordinário, me identifiquei bastante!
Muito obrigada, Saronaya! Continue lendo, a leitura promove o crescimento humano. Beijos 😘
ExcluirComo sempre os escritos da Professora Goretti Borges são extraordinários e, este não é diferente dos demais. Mais uma vez quero dizer que estou na fila para comprar o seu livro.
ResponderExcluirUm beijo simples e um abraço extraordinário.
Professora Joseni Santos
Abraços, beijos e agradecimentos! Você é uma pessoa maravilhosa, uma incentivadora que se alegra e festeja junto. Só tenho a agradecer, muito obrigada! 😘🫂
ExcluirOi
ResponderExcluirParabéns, excelente texto!!! Da sua irmã marluce
ResponderExcluirMuito obrigada, minha querida Marluce! Beijos 😘
ExcluirGoretti, seu texto é uma joia de sensibilidade — você transforma o simples em revelação. Ao ler suas palavras, a gente percebe que o extraordinário não está distante, mas escondido no cotidiano, esperando o olhar certo para florescer. Que belo dom o seu: fazer da reflexão uma forma de fé. Sou sua fã ❤️ Wal
ResponderExcluirQuanta gentileza, muito obrigada pelas palavras de incentivo! Muito gratificante conviver com sua afetuosidade e carinho. Um forte abraço 🫂
ResponderExcluirGoretti, como de praxe, seu texto ficou extraordinário. Comparações e citações, nada básicas. Parabéns, permaneça escrevendo e nos enchendo de contentamento em constatar o quanto seus textos nos causa um verdadeiro deleite. Edinalva Rodrigues
ResponderExcluirMuito bacana, arrasou dona Goretti! O melhor, não conhecia seu lado blogueirinha kkkkkk. Rafael Dantas
ResponderExcluirMuito obrigada, meu querido! Um abraço 🫂
ExcluirSempre fico muito admirada com a sua escrita.O que define o básico e o extraordinário? Às vezes penso que ambos são complementares. Parabéns! Diana Meire
ResponderExcluirMuito obrigada, professora! Um beijo 😘
ExcluirExcelente texto. Parabéns pela sensibilidade!
ResponderExcluirCandice
Muito obrigada, minha querida Candice!
ResponderExcluirOi Goretti, estou passando para parabeniza-la. Espero que você publique logo suas crônicas pois sua escrita é muito filosófica, atraente e erudita. Débora Raquiel
ResponderExcluirMuito obrigada pela gentileza! Um forte abraço 🫂
ExcluirParabéns Goretti, gostei muito do seu texto. Continue escrevendo e motivando as pessoas a escreverem também. Podemos dizer que você é a escritora da família? Bjo Juliana Beatriz
ResponderExcluirKkkkk Ainda não. Muito obrigada e mil beijos 😘 pra ti.
ExcluirNo meu entendimento, tanto o básico quanto o extraordinário são importantes para o nosso existir, apenas manter o equilíbrio para saber “usufruir “.
ResponderExcluirIsso mesmo, também penso assim! Equilíbrio é tudo. Um abraço 🫂
ResponderExcluirOi Goretti, li seu texto, achei muito bom e profundo! A parte que mais me tocou foi quando você escreveu “o extraordinário está contido na subjetividade — fé, coragem, força, percepção, audácia, perspicácia, criação, no mais que humano, no que extrapola, na dúvida, na polidez do ser.” Acredito que o extraordinário tb está presente na simplicidade do amor, na transformação e comtemplação da vida. Enfim… parabéns! 😘😘😘
ResponderExcluirMuito obrigada, Candice! Que bela observação que você fez! Tudo está contido no amor, tens razão! 😘
ResponderExcluirGostei muito do seu texto, Goretti! Ficou excelente e muito bem construído.adorei a forma como você demonstrou que o extraordinário pode ser encontrado nas nuances do cotidiano, e a diversidade de referências enriqueceu ainda mais a reflexão. Parabéns pelo trabalho!
ResponderExcluirRuth
A articulação entre o básico e o extraordinário foi muito bem construída, e o uso diverso de referências — da Bíblia a Raul Seixas — enriqueceu ainda mais a ideia central do texto. Gostei especialmente da forma como esses elementos se complementam na reflexão proposta. Continue compartilhando suas reflexões; com certeza será enriquecedor! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirComo alguém comentou acima, realmente há alguns dias atrás o Evangelho da Igreja Católica foi justamente essa passagem de Lucas capítulo 17, que fala do servo inútil. Confesso que lá na hora não entendi bem o significado, mas seu texto me fez entender melhor. Outra frase que me fez pensar, e concordar com ela, foi a que diz que "Quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso". Realmente, ao abrirmos nossa mente, vemos que nosso "paraíso" não é tão completo assim. Parabéns, Goretti, pelo ótimo texto!
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