ESPIONAGEM ULTRASSECRETA
— Chegou?
A mulher entrou com um “sim”, empurrando o carrinho de compras.
— Conte as novidades! — exclamou o marido, interrompendo a leitura da obra Crônica do Pássaro de Corda.
Ela caminhou até o escritório, deixando o carrinho ao lado da pia limpa. O início de setembro, com ventanias e chuvas finas, o fez fechar portas e janelas.
— Aqui está frio — disse ele, tentando justificar o calor que fazia ali dentro.
— É, como sempre, você se enfurnando nessa sua caverna.
Ela o chamava, de forma carinhosa, de "Homem de Neandertal", por ele gostar de viver isolado e ser rude. Era uma brincadeira recorrente entre eles, reforçada pelas diferenças de temperatura entre os dois: ele sempre com frio, ela sempre com calor.
Na convivência do casal, essas disparidades térmicas já eram rotina. Ele acreditava que seus ancestrais tinham vindo do Polo Norte, enquanto os dela, da África. As divergências climáticas ainda rendiam discussões acaloradas, mas sem maiores impactos no relacionamento.
— Chutei um grilo que estava na entrada da nossa porta — comentou ela, deitando-se no sofá do escritório.
— Deve ter sido o mesmo que escutei ontem à noite — respondeu ele, tirando os olhos do computador para encará-la.
Nesse ínterim, homens de preto subiram até o andar deles e recolheram o grilo que ela havia chutado. O porteiro nem percebeu como aqueles homens entraram e saíram; só se lembra de que, em determinado momento, desmaiou por causa de um cheiro forte que saiu de uma caixa de delivery de pizza.
Enquanto conversavam, ela fez uma pausa, mergulhada em lembranças da feira daquele dia. Lá, uma feirante a havia alertado:
— Moça, este carroceiro é doido.
— Eita, e agora, o que faço para dispensá-lo?
— Deixe comigo. Ei, carroceiro! O primo dela vem pegar as frutas.
Sem pestanejar, a feirante e o filho retiraram os sacos da carroça. A situação a fez rir por dentro, embora não demonstrasse.
Ao notar a distração da esposa, o marido voltou para o computador e deu continuidade ao artigo que estava lendo. Na publicação, um renomado físico atômico defendia que: "Em uma perspectiva teórica que considera os princípios da relatividade, especialmente a reversibilidade das equações fundamentais da física no tempo, é possível especular que o processo que levou à formação de estruturas complexas — como o Big Bang originando o universo — também poderia, em condições extremas e inversas, permitir a condensação de matéria organizada em formas distintas e improváveis. Assim, levando essa ideia ao limite e tratando os átomos como entidades reorganizáveis dentro das leis da física, pode-se hipotetizar que os átomos que compõem um ser humano poderiam, teoricamente, ser reconfigurados e condensados de maneira ordenada até assumirem a forma e a funcionalidade biológica de um grilo".
Quando percebeu que o marido estava muito concentrado, ela o interrompeu, pedindo uma “audiência”. Assim chamavam, em tom de brincadeira, os momentos em que queriam conversar com mais seriedade. Ele se virou, curioso, e ela prosseguiu:
— Ontem à noite, acordei sentindo que algo estranho acontecia. Você estava dormindo aqui no escritório, como sempre faz de madrugada. Acendi a lâmpada e percebi o colchão com manchas vermelhas.
— De onde teria vindo o sangue?
— Eu também pensei que fosse um sangramento, porém percebi, ao cheirar, tratar-se de suco de beterraba, que derramei sem querer ao me deitar.
Riram da situação e, como de costume, a conversa derivou para temas variados: terrorismo, meio ambiente... até que voltaram a falar da família.
— Acho que vou acompanhar minha mãe na consulta.
— E é preciso?
— Claro. Ela omite o fato de que está se esquecendo.
— Deve ser esquecimento o fato de ela não dizer que esquece.
A decisão estava tomada. Durante a ligação, tentou convencer a mãe:
— Mãe, nós vamos entrar com a senhora para falar com o médico sobre como a senhora está.
— Você quer é aparecer — respondeu a mãe, com uma gargalhada tensa, como se dissesse: "Deixe de ser besta, que eu não estou demente."
— Eu vou pagar sua consulta. Mesmo assim, não tenho o direito de acompanhá-la?
— Tudo bem, pelo menos você faz esse pequeno passeio — cedeu ela, após a insistência do filho.
Na semana seguinte, a “procissão” — como a mãe apelidara o grupo que a acompanhava — entrou no consultório. O filho tomou a palavra:
— Doutor, ela está muito esquecida e dorme mal.
— É sua mentira — retrucou ela, com o semblante carregado.
Enquanto a consulta prosseguia, a mãe, nervosa, negava tudo e batia os dedos nas próprias pernas. O médico, paciente, checava a ficha da paciente, enquanto o filho, aproveitando o silêncio, chamou a atenção da mãe para que ela tivesse um relacionamento mais respeitoso com a empregada.
— Eu nunca gritei com ela.
— Já, e não foi só uma vez, não. E acabe com essa conversa de chamar a neta dela de “negrinha”.
O bate-boca durou mais de meia hora, até que o médico encerrou:
— Tome este remédio três vezes ao dia.
— Ela corta os comprimidos em quatro e só toma um pedaço — denunciou o filho.
— A senhora deve tomar conforme a receita, retomar a fisioterapia e usar sandálias ortopédicas — finalizou o médico, apertando a mão do filho e desejando-lhes boa sorte.
Após a consulta, foram ao estacionamento e, por acaso, ele percebeu um parafuso preso no pneu dianteiro.
— Olha só! Só pode ter sido naquela rua onde, há bastante tempo, três pneus furaram ao passarmos por lá.
— Lembro-me — assentiu a esposa, acrescentando que lá sempre haveria armadilhas: pregos, parafusos, cacos de vidro...
Os compromissos urgentes tiveram que esperar, pois a borracharia era o destino mais adequado naquela situação. Lá, decidiram encher os pneus com nitrogênio.
— Essa molécula tem uma ligação tripla muito forte e curta. Por isso, o pneu cheio de nitrogênio não vaza com facilidade — explicou o borracheiro, ao terminar o serviço.
A esposa não tinha descanso: além da feira e da frota de veículos, também administrava corridas de camelo num hipódromo onde árabes exibiam seus animais enfeitados com túnicas douradas avaliadas em milhões. O marido, por sua vez, cuidava das apostas, desde que as chuvas artificiais entraram no portfólio de serviços do deserto.
No dia seguinte, a esposa viajou com a sogra para o interior. No caminho, seu carro foi interceptado pelos guerrilheiros que exigiam reparação financeira pelos danos causados ao agente secreto disfarçado de grilo, que ela havia maltratado.
Heraldo Lins Marinho Dantas – Natal/RN, 11.09.2025 – 22h21min.
Agradeço as interferências de Gilberto, que contribuíram para que o texto acima chegasse a este formato. Foram três versões enviadas e reprovadas. Ele fazia comentários pertinentes, e eu aceitava suas críticas como verdadeiros ensinamentos. Muitas vezes, produzo envolto por uma camada que me cega a ponto de não atentar para a verossimilhança. Escorrego na maionese, como diz o ditado popular — e o pior é que acredito que o leitor vai adivinhar o que quero dizer.
ResponderExcluirA única forma de explicar que uma pessoa possa se transformar em um grilo foi utilizando um artigo fictício sobre mecânica quântica. Na arte, tudo é possível. E, como literatura, o autor pode mentir — como disse Ariano Suassuna: “quanto mais mentir, melhor.”
É por essa liberdade de criar que a literatura me atrai.
Espero que os leitores e leitoras curtam o texto.
Parabéns, Heraldo, pelo desejo que sempre manifesta de aperfeiçoar o que faz. Isso é parte do perfil de um verdadeiro artista. Para iso, é mister não dar ouvidos à soberba e estar aberto às críticas, principalmente às construtivas.
ResponderExcluirAgradeço pelo comentário alto astral.
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