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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

EMPURRADO PELO ABSURDO

 


EMPURRADO PELO ABSURDO


Dois ovos pela manhã e... hããã... O homem pensou. Pensou. Estava desanimado para dizer como tinha sido seu desjejum. Com a demora, o médico tentou apressar a consulta:

— O que mais?

— Na próxima vez eu digo — respondeu o homem. — Por hoje, já falei demais.

E saiu sem sequer dizer "até logo".

Lá na frente, lembrou-se do bolso de trás: o celular. Havia deixado no consultório. Contara noventa e oito passos — valia a pena voltar, e foi o que fez. Ele tinha a mania de contar os passos; porém, na volta, nem se lembrou disso.

“Meu celular... Deixei em cima do birô do médico.”

Foram procurar.

— Não encontramos. Compre outro — disse a recepcionista.

O injustiçado ficou sem provas para chamar a polícia, e seu pensamento esbarrou num assunto que fugia totalmente do contexto: qual a diferença entre crocodilos, jacarés e aligátores? Se estivesse com o celular, iria pesquisar.

Já se encontrava na calçada quando a mesma recepcionista que mandara comprar outro o chamou:

— Tome. Estava debaixo da cadeira da sala de espera.

Ele pensou em dizer: “Quer casar comigo?”, mas preferiu ficar somente no:

— Muito obrigado.

Caminhou um pouco e encontrou um boteco na esquina. Havia três homens jogando cartas numa mesa; garrafa de pinga e tira-gosto, em outra.

— Posso pegar uma dose?

— Não!

— Por quê?

— Porque depois da pinga, você vai querer um pedaço de frango, vai se meter no jogo e vai sair com a cara quebrada. Para evitar tudo isso, é melhor não — disse o jogador que se achava o porta-voz do grupo.

O dono do bar afinava o violão. Ao vê-lo se encostar no balcão, perguntou:

— Canta alguma coisa?

— Dê um ré maior.

Logo no início da canção, o jogador olhou em sua direção e refez a fala: 

— Quando terminar, pode vir pegar a pinga.

Aplaudido, ele foi para a mesa dos jogadores. Duas horas depois, a profecia se cumpriu: levantou-se do meio da rua com o nariz sangrando. Bateu a poeira, pensou em se vingar, mas resolveu ir embora.

Desorientado, entrou na primeira porta aberta que encontrou: uma biblioteca pública com pouca movimentação. Folheou alguns livros como quem está interessado em pesquisar. Deparou-se com a frase: “A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago.” Além da frase, o título do livro também o deixou intrigado. O que significa factótum?

Pesquisou e descobriu: era uma pessoa que fazia de tudo.

"Será que sou um factótum?", pensou.

Retirou o livro da estante e sentou-se à mesa de leitura.

Logo depois, uma jovem se aproximou com uma braçada de livros.

Ao levantar a vista, ela não se conteve:

— O senhor está sangrando. Quer ajuda?

— Sofri um acidente na igreja. Estava arrumando o altar e uma estátua caiu no meu rosto.

— Vamos para a minha casa. É aqui pertinho.

Ela o pegou pelo braço e lhe proporcionou banho quente, curativo, lanche e cama.

— Durma um pouco. O senhor precisa descansar.

Ele obedeceu.

Vieram os sonhos. Ele estava montado em um cavalo preto, numa noite sem luar, à beira-mar. Cavalgava por entre duas barreiras d’água — lembrando Moisés — e de repente os paredões se fecharam.

Acordou com a polícia jogando um balde d’água em seu rosto.

— Está preso!

— Qual foi o meu crime?

— O senhor profanou uma igreja.

— Não, não fui eu.

— Esse rosto cheio de curativos é a prova.

— Eu menti. Isso é o resultado de uma surra lá no bar.

Os policiais viraram fumaça — era um sonho dentro de outro.

Voltou para cima do cavalo e, num piscar de olhos, a praia transformou-se em um deserto de neve, com uma matilha de lobos em seu encalço. Alguns animais alcançaram o cavalo; contudo, um homem passou montado em um tigre e o salvou.

Durante a viagem pelas montanhas, conversaram sobre a salvação da alma.

— E o corpo? Também pode ser salvo?

— O corpo não existe. Tudo isso é fruto do funcionamento dos órgãos dos sentidos, que atuam dia e noite para sustentar uma falsa existência. Se deixarem de funcionar, você deixará de existir.

Acordou com pressão na bexiga. Como seria bom não sentir mais dor. No banheiro, fez o que tinha que fazer, além de...

A jovem bateu na porta.

— Está na hora de o senhor ir embora.

— Vou já — respondeu ele.

Abriu a porta do banheiro e dirigiu-se para a sala de estar.

— Aconteceu alguma coisa?

— O meu marido está para chegar, e ele não vai gostar de ver o senhor furtando os sonhos dele.

— Eu não furtei nada. 

— Aqueles sonhos fazem parte do repertório daquela cama. Ele comprou a cama, os lençóis, os travesseiros — e os sonhos vieram como brinde. Se o senhor não for embora, ele vai lançar, sobre o senhor, os antigos pesadelos que guarda no subconsciente. E aí o senhor vai saber o que é sofrimento.

— Como você sabia que eu estava sonhando?

— Usei a paranormalidade aperfeiçoada para vasculhar sua mente enquanto dormia. Vá!

Dito isso, ela o empurrou de porta afora. Ele não manifestou nenhuma reação contrária, pois aquela moça, enquanto ele dormia, havia furtado todas as suas memórias, deixando-o indefeso. 


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 15.09.2025 - 17h40min.

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