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terça-feira, 19 de agosto de 2025

A LIBERDADE PASSA PELO NARIZ

 


A LIBERDADE PASSA PELO NARIZ


Respirar. Nem se pensa como fazer, até que, um dia, o ar começa a disputar espaço com um desvio de septo, e então o que antes era tão fácil vira um desafio. O ar some quando mais se precisa e, quando aparece, é só pela metade.

Entre consultas e exames, percebi que viver estava difícil e, nessa luta com rounds contados em segundos, aprendi que o automático nem sempre é garantido. Foram anos convivendo com o barulho do sono. Dormir? Só de lado e com um travesseiro estrategicamente posicionado. No fundo, eu já nem lembrava como era respirar com os dois lados do nariz funcionando. A gente se acostuma com cada coisa…

Até que, um dia: "Vamos operar." A cirurgia foi marcada. Confesso que passei a semana anterior me despedindo da minha rotina barulhenta e dos lenços de papel, que já eram quase parte do meu vestuário.

No dia do procedimento, acordei com o nariz entupido por dentro e por fora. Um curativo enorme, uma sensação de ter sido atropelado por um rinoceronte.

— Pronto, seu Heraldo, foi tudo bem.

A voz do anestesista foi se distanciando. Ouvi ainda:

— Aquela área do Copacabana Palace ficou ótima.

Imaginei que era o diálogo do médico com a cirurgiã assistente. Essa é a conversa da elite. Imaginei como ficariam as técnicas de enfermagem ouvindo que aqueles que faziam parte da equipe estavam passando os feriados no hotel mais famoso do Brasil, e elas, pegando o busão superlotado todo final de noite, rumo à zona norte.

— E agora? — perguntei, como se estivesse participando de um torneio.

Ninguém respondeu. Aquelas vozes em alvoroço foram se dissipando. Eu estava consciente em uma cama do centro cirúrgico e ninguém falava comigo. Comecei dialogando com meu ego. Não era delírio. Era vontade de falar com alguém.

— Estou aqui esperando — disse em voz alta.

— E daí? Sua vida sempre foi esperar — eu disse a mim mesmo, tentando sair daquela sessão torturante.

Parece que o inconsciente se revolta por ter sido tratado como objeto, durante mais de duas horas sentindo o corpo sendo cortado, iluminado por três holofotes com 84 lâmpadas LED cada, lembrando um disco voador. Só o tlim tlim dos instrumentos cirúrgicos sendo arrumados. A indiferença do restante da equipe doía mais do que os cortes de bisturi.

A televisão aliviou-me quando cheguei ao apartamento para recuperação. Da maca para a cama, lençol sem que eu precisasse fazer esforço. Fiquei sozinho com a acompanhante.

Os dias seguintes foram dignos de uma novela dramática: nada de assoar o nariz. Dormi com travesseiro de avião para não virar de lado. Até uma algema de tecido idealizei para evitar meter a mão no curativo tampando a cara. Mas, lá pela segunda semana, veio o momento. Tiraram os curativos. Respirei fundo — e, pela primeira vez em anos, o ar veio suave, democrático. Confesso que me emocionei a ponto de querer...

— Não chore — disse a enfermeira.

— Esse é o respirar de um recém-nascido — completou o médico.

Antibióticos, assepsia quatro vezes ao dia, alimentos líquidos, pastosos...

Massagem para drenar o inchaço. A esteticista, com seus dedos de fada, me fez pensar se eu merecia todo aquele cuidado.

— Não importa se você merece — respondi a mim mesmo —, o que importa é que vencemos a guerra contra a escassez de ar.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.08.2025 - 09h40min.

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