quarta-feira, 21 de maio de 2025

QUE EU ME VÁ ANTES DELES (Nelson Almeida)

 


QUE EU ME VÁ ANTES DELES 


Eu só peço a Deus — e peço com a humildade de quem tudo teme — que me leve antes dos meus filhos. Não por covardia, mas por obediência ao curso natural da vida.

Quando nascem, eles nada sabem de nós. Somos, para eles, como árvores antigas, plantadas antes do tempo da memória — uns mais frondosos, outros mais retorcidos; uns de sombra larga, outros de tronco ressequido. Eles se habituam à nossa presença como se a terra sempre nos tivesse suportado ali. 

E um dia, talvez, decidam buscar outra sombra, outro chão. Partem. E, mesmo assim, quando morremos, choram. Sofrem. Mas compreendem. Porque é da ordem do mundo que os galhos velhos caiam primeiro, que as raízes antigas deem lugar às novas mudas.

Quando os filhos chegam, são sementes que plantamos com mãos trêmulas de esperança. Vemos brotar a vida frágil e cuidamos com zelo, como quem protege um sonho do vento. E, ao crescerem, esperamos por suas sombras, por seus frutos. Sonhamos vê-los florescer quando já estivermos cansados de florir. E, nesse processo, algo misterioso acontece conosco. Pois quando os filhos nascem, já existimos com nossos medos, nossos vícios, nossos erros. 

Ainda assim, nos olham com brilho nos olhos, com orgulho, com amor. Esperam que sejamos bons. Dependem da nossa força, da nossa seriedade, da nossa sobriedade. Eles mudam a gente. Nos moldam em silêncio, como a chuva transforma a pedra — sem pressa, sem alarde.

Eles são o verde que se espalha pelo solo árido da nossa existência. São eles que nos regam de sentido, que nos devolvem o riso, que nos sustentam quando a alma já não encontra onde firmar os pés. São o que temos de mais belo, mais puro, mais vivo.

Mas, quando um filho parte antes do pai — ah, Deus — tudo se desfaz. É como se o campo se tornasse deserto de súbito, como se a primavera morresse antes de abrir os olhos, como se a árvore, ainda viva, visse o seu fruto apodrecer no galho.

Por isso, Deus, se houver justiça nos desígnios do céu, permita-me ser árvore velha num campo florido, e não árvore madura num jardim que jamais deu flor. 

Não me deixe assistir à morte daquilo que é continuação de mim. Leve-me antes — antes que as raízes da minha alma se rasguem sem remendo, antes que o mundo perca o seu eixo, antes que eu perca o nome de pai.


 Nelson Almeida. Natal, 21/05/25. 04:23.

Um comentário:

  1. Quanta profundidade...?!?! Sentimentos se derramando pelos caminhos da existência... Muita sabedoria... Grande Nelson Almeida! 🙏✍️👏👏👏

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