ESTADO TERMINAL DA INSPIRAÇÃO
Lá vêm, novamente, as palavras, pedindo para serem escritas, e eu, por escravo que sou, obedeço-as. Pergunto-me se já não virou vício essa relação entre nós, mas como não tenho vocação para ser viciado em coisa alguma, respondo-me que apenas é um passatempo. Logo estarei com abuso de registrá-las e consciente que pagarei alto preço por me tornar alforriado.
Sento-me na escrivaninha, querendo apagar o que passei horas lapidando. Ah! meu santo verbo. Ajude-me a ficar longe desses substantivos, peço aos prantos diante do teclado que insiste em piscar. Coloco a mão na cabeça, não estou bem.
Pulo fora da cadeira e venho deitar-me. Aqui tem outro teclado portátil fechado por minha vontade. Neste momento, até o barulho das ondas, quebrando na recém-engorda, causam-me mal-estar.
O mundo das cores sumiu. Será que estou daltônico? Não, o daltonismo passou longe do óvulo. Por pura escolha, o teto é branco, paredes, piso, até o sangue se tornou branco, assim como deu branco no jogo das lembranças.
Saio à janela. Uma jovem corada contrasta com a palidez da avó, passeando juntas as vejo do alto do prédio. Daqui a setenta anos a menina será conduzida por outra menina no ciclo viciante da descendência, e eu estarei no buraco de minhoca cumprindo com minha evolução de húmus. Pisado pela neta da neta, grudarei em suas sapatilhas de bailarina para ouvir aplausos na triste ilusão que a mim são dirigidos.
Volto à realidade despertado pelo barulho do liquidificador. Na cozinha, alguém prepara o almoço. Todos os dias, bilhões de pessoas acionam liquidificadores com o único propósito de causar erupções vulcânicas. A terra não pode mais dormir em paz. Quando será que esses insetos, em formato de humanos, me deixarão em paz, pensa o planeta nas suas mais abismais temperaturas.
Você nem comeu a pêra que deixei, escuto a voz do além. É que não tive tempo de ingeri-la, respondo para a boca da noite que chegou mais cedo só para reclamar. O dia passa, a noite se arrasta e na madrugada fui acordado por um rinoceronte de óculos escuros, sussurrando a equação de Bháskara ao pé da minha cama. Pedi silêncio, mas ele apenas me entregou um recibo de aluguel do meu próprio juízo, vencido desde o século passado. Tentei pagar com lágrimas, mas a máquina de cartão exigia risadas sinceras - coisa em falta no estoque do meu peito.
Então decidi fugir de mim, das palavras, indo parar no supermercado, acreditando que a realidade morava entre os pepinos. Lá, um abacate me encarou com desconfiança e uma cebola começou a chorar, sensibilizada com meu drama literário. Tentei conversar com o caixa, mas ele só respondia em códigos de barras.
Dei meia-volta e encontrei um carteiro morto com um bilhete preso ao peito: Última entrega, suas expectativas. Não me surpreendi. Abri a porta do apartamento com cuidado para não acordar os traumas, que dormiam empilhados no sofá. Sentei à mesa com a serenidade de quem toma chá com veneno e discute filosofia. Liguei a televisão: um noticiário anunciava o fim do mundo pela centésima vez, mas só após o intervalo. Aproveitei o tempo para preparar uma sopa com as últimas esperanças que restavam na geladeira — estavam vencidas, claro, mas ainda deram um bom sabor.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 08.05.2025 - 14h25min.
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