CAROS CURIOSOS
Um homem vestiu-se e saiu do quarto para pular do quarto andar. Subiu e desceu do parapeito. Não iria se suicidar com aquela vontade de ir ao banheiro. Foi. Sentou-se enquanto seu pensamento visitava o passado. Meditou num assunto seriíssimo: quantas vezes estivera sentado naquela posição de constante espera? Suava, e isso fez soar o alarme intuitivo, botando amebas para fora.
A alegria dele era saber que, dentro de alguns instantes, ficaria livre daquela dor humilhante. Quem sentiria sua falta? Talvez ninguém. O tempo passava, e ele olhava passar, levando junto a mulher que ele queria que visse seu corpo no chão.
Ela tomava aquele caminho todos os dias, e agora sua vingança estaria completa. Não suportava ser chamado de traído por um palhaço de circo. Ela ficou com o palhaço, incentivada pela amiga que também saiu ganhando na olimpíada dos três.
Parou de suar. Uma fraqueza tomou conta até de seu pensamento. Pensava em câmera lenta. Viu o chão esticar, levando com ele o papel higiênico. Tudo ficou longe. A toalha era apenas um lenço distante de seu alcance. Uma mulher surgiu, toda de preto. Era sua mãe — deu para reconhecê-la pela lata na cabeça. Ela dizia: venha, meu filho, já chega de sofrimento. Você só serve para votar em quem lhe escraviza.
Lá vem essa tendência política que me acompanha, pensou o homem nu. Suas calças estavam longe do campo visual. A cueca desbotada reclamava que seria horrível para as peritas vê-lo de cueca velha. Ah, sim, vou trocá-la. O tempo parou de passar. Os ponteiros do relógio estabilizaram-se, assim como a água da torneira com a qual lavava as mãos. Para que lavar as mãos antes de morrer?
Cambaleando, saiu do ar por alguns instantes, batendo com a cabeça na quina do piano. Algumas notas saltaram para ouvidos vizinhos. Olha o barulho aí!, gritou um palhaço sem pintura. Era outro daqueles que ele odiava , afinal, ódio era o que não lhe faltava. Sentia ódio até de si mesmo, da sua covardia, da falta de inteligência e memória. Nasceu sem esses atributos, motivo maior das suas invejas. Mas agora, sim, iria se igualar a Newton, Leonardo e Einstein, no quesito: defunto bom é defunto longe da vista dos vivos.
Amava todos os pensamentos profundos, desde que longe dos seus pensadores. Para ele, a vida era uma ilha cercada de tubarões sugadores de suas ideias.
Vestiu sua única calça, com bolso, para guardar a carta de despedida que carregava consigo, caso decidisse se interromper longe de casa. A carta dizia assim: caros curiosos...
Cambaleou até a varanda. Sentou-se agora no chão frio da varanda. A dor real encontrou a dor existencial, e fizeram uma trégua temporária. Estava cansado. Cansado de se odiar, de lembrar de todos os aniversários que passou sozinho, de todas as vezes que comprou flores que murcharam antes de serem entregues.
Lembrou-se do palhaço. Da mulher. Da amiga. Dos espetáculos de traições que ainda ecoavam na mente.
Uma brisa gelada soprou da rua, fazendo a carta balançar no bolso. Era um lembrete: caros curiosos... Talvez devesse rasgá-la, ou queimá-la. Mas não tinha fósforos, nem vontade.
Deitou-se ali mesmo, na varanda, como quem se rende. E foi então que teve um estalo. Lembrou-se de que havia leite na geladeira. E se estragasse? Seria um desperdício. Levantou-se com esforço, como quem ressuscita pela necessidade. Talvez amanhã morresse. Ou depois. Mas hoje ainda tinha leite.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 23.05.2025 - 15h57min.
"Caros Curiosos", é uma obra poderosa e visceral, que transita com maestria entre o trágico e o cômico, o profundo e o absurdo. Com uma linguagem rica em imagens e um humor sombrio que beira o existencial, o autor conduz o leitor por um fluxo de consciência instável, revelando a complexidade da mente humana em seus momentos mais vulneráveis. A narrativa surpreende ao encontrar beleza no ordinário, transformando o simples lembrete de um leite na geladeira em metáfora para o fio tênue que nos prende à vida. Um texto corajoso, original e poeticamente desconcertante.
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ResponderExcluir“Caros Curiosos” é um texto desconfortável e até lembra o fluxo de consciência. Seu maior mérito está na capacidade de tornar o drama humano ridiculamente cotidiano.
A figura do palhaço como símbolo de humilhação é poderosa e traz uma camada de crítica social e emocional. A presença da mãe (com "uma lata na cabeça") evoca traumas infantis e talvez uma crítica política, ainda que de modo confuso.
O desfecho surpreende pela simplicidade e humanidade: o leite na geladeira sintetiza com delicadeza a ideia de que a vida, às vezes, continua por motivos banais.
Acompanho a trajetória de Heraldo desde o texto "A escrita fala da fala" que ele publicou no Jornal Trairi, hoje extinto.
ResponderExcluirSempre ele me surpreende pela criatividade inesgotável. Parabéns Heraldo, pelos presentes de boas narrativas. Lembro que eu comprava o jornal apenas para ler o que você escrevia. Sou sua fã, se é que deu para perceber. Kkkkkkk.
Tentava imitar o Ícaro
ResponderExcluirmas teve que recuar
nem mais olhou para o chão
correu para se soltar
era cada som de trovão
dor com intensa explosão
sofrer, mas não chorar
A Vingança suicida
no circo do infeliz
a dor do intestino
chegava sem querer bis
ela selou seu destino
tristeza, um desatino
sem paz, disse o juiz.
o piano tocando ódio
A mãe chega enlatada
pensar no que pensar
por aquela alma penada
o som tem dó do fim
o "NÃO" gritou que sim
faz parte dessa jornada
a carta suja de Leite
mostrava a realidade
recorreu ao desistiu
diante da banalidade
é muito simples morrer
às vezes esse viver
é ato de vaidade.
ResponderExcluirQuem diria que a linha tênue entre o desespero existencial e a esperança seria... um litro de leite na geladeira. Heraldo nos leva por um drama digno de tragédia grega, só que com pausa pro banheiro, crise de identidade política e uma cueca velha de figurino principal. No fim, o herói (ou anti-herói) sobrevive pela lactose. Que sirva de lição: nunca subestime o poder redentor dos laticínios.