domingo, 19 de janeiro de 2020

Paisagem do Sertão ( Jonas Borges)



Hoje ouvi o cântico do lagarteiro Que há muitos anos não o ouvia Pulando de galho em galho Caçando besouros num mato molhado As borboletas que nascia. O verde cobre as matas O tanque de água gelada Na fenda de um lajeiro As vingas do umbuzeiro Coco catolé seco e sem cor Um pedaço de rapadura Produzida do melaço da cana Na sombra da umburana Mata a fome do caçador. Teijú bicho ligeiro Correndo ao pingo do meio-dia O tatu-galinha comendo tanajura O mel da Cupira, incomparável doçura. A rouxinol estala uma cantiga de alegria Com toda àquela euforia fazendo ninho na brecha do alpendre A lambu chama diferente Na sombra do pereiro O cheiro do marmeleiro Umedece as nossas narinas As aves de rapina Enfeita o céu do sertanejo. O aroma suave da malva O sol reflete na sua flor amarela Fico vendo da janela A sabiá fazendo aquela farra A casaca-de-couro dispara Ao toque de som estridente O perfume se exala nas matas Meu sertão de caatinga acinzentada Que depois dessa chuvada Vira verde-oliva reluzente.


Autor: Jonas Borges

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Carta aberta a Regina Duarte




Cara Regina Duarte,

Convivo com sua imagem desde criança, provavelmente desde que você interpretou a Viúva Porcina em Roque Santeiro, que foi exibida pela primeira vez quando eu tinha 3 anos. Aos poucos, fui me informando sobre sua trajetória e me dei conta que sua evolução artística foi impressionante: ainda muito jovem, foi recrutada pelo famoso diretor Walter Avancini quando ele a assistiu num comercial, e sob a tutela dele transformou-se numa das principais atrizes jovens da extinta TV Excelsior, fazendo papéis de mocinha romântica com elevada carga dramática em novelas como “As minas de Prata”, “A grande viagem” e “O terceiro pecado”, para depois ingressar na Globo, onde sua fama aumentou a tal ponto que, estrelando novelas como “Irmãos Coragem”, “Minha doce namorada”, “Carinhoso” e, principalmente, “Selva de Pedra”, ganhou a alcunha de “namoradinha do Brasil”. Contudo, você não se acomodou e, sentindo chegar a maturidade, preferiu investir em papéis mais densos, mostrando que também era uma mulher capaz de segurar a vida com as próprias rédeas. E ao estrear a novela “Nina”, o Brasil viu surgir uma nova Regina, na pele de uma jovem professora idealista que não tinha receios de enfrentar a moral conservadora da São Paulo dos anos 20 e lutava com uma milionária para ficar com o amor de sua vida. E esse caminho foi a ponta de partida para outras personagens: Maria Lúcia Fonseca, a Malu, socióloga divorciada que tentava “começar de novo”, criando a filha adolescente enquanto lutava contra os preconceitos da sociedade da época contra mulheres separadas; Raquel Acciolly, guia turística tapeada pela própria filha que não tinha medo de botar a mão na massa enquanto tentava provar, para ela e para si mesma, que era possível ser bem-sucedida sem perder a honestidade (e conseguiu, primeiro vendendo sanduíche na praia, até ter condições de abrir seu restaurante); Maria do Carmo Pereira, a empresária que se orgulhava da origem humilde e do pai sucateiro, e afrontava sem receios a aristocracia esnobe de São Paulo; e, não menos importante, Chiquinha Gonzaga, a primeira compositora da MPB, que, abolicionista, republicana e duas vezes separada, brigou com a sociedade do Século XIX para ser ouvida e respeitada, além de ter praticamente inaugurado a luta pelos direitos autorais no Brasil quando fundou a SBAT. Todas mulheres corajosas e independentes, que não tinham medo de lutar pelo que é certo nem de dizerem o que pensavam, que inspiraram e inspiram a luta de muitos, e que, algumas vezes, tiveram de enfrentar a Censura para que sua atuação chegasse ao resto do país. Foi através dessas personagens que aprendi a respeitá-la, pois vi que era sua atuação e entrega que as tornava reais.
Por tudo o que elas representam, é que eu lhe peço: não aceite nenhuma indicação para ser secretária da Cultura do governo Bolsonaro.
Este governo, senhora Duarte, ao qual a senhora apoia sem nenhum receio, além de contribuir para a vida do pobre ser mais difícil, tem tratado a Cultura como algo de segunda classe, reprimindo nossa produção cinematográfica, boicotando o patrocínio a peças que questionam o papel da ditadura nas mazelas do país e, como ato mais recente, usando o Fisco para tentar prejudicar atores que trabalham na mesma empresa que a senhora. E o secretário que acaba de deixar essa função só a conseguiu porque ganhou destaque depois de ter chamado de mentirosa sua colega Fernanda Montenegro, uma das nossas atrizes mais importantes (e que dividiu com você duas obras televisivas – “Rainha da sucata” e “Incidente em Antares – e um personagem de renome do teatro – “A compadecida” de Ariano Suassuna em duas das suas adaptações cinematográficas), só por ela ter se posicionado contra a censura. E agora, depois que, como um peixe que morre pela boca, ele caiu em desgraça por ter parafraseado um discurso autoritário e movido pelo ódio, dizem que você o substituirá.
Na verdade, não deveria me surpreender com isso, pois parece só mais um passo de vários que a senhora tem dado nos últimos anos, desde quando apareceu no horário eleitoral em 2002 fazendo terrorismo político dizendo “Eu tenho medo”, vinculando-se cada vez a um reacionarismo que, segundo especulam, tem sido sua tônica desde que se tornou fazendeira. Não foram poucos os seus fãs e colegas que se decepcionaram com algumas de suas atitudes mais recentes, como quando minimizou a homofobia do atual presidente dizendo que “são só palavras como as que meu pai falava”, e não posso negar que isso choca, pois trazem a dúvida se, mesmo tendo interpretado personagens tão libertárias (fora a verdadeira radiografia das mulheres brasileiras que a senhora fez na série “Retrato de mulher”, em 1993), a senhora conseguiu aprender alguma coisa com elas.
Não sei se a senhora prefere o conforto financeiro ou o seu legado artístico, mas gostaria de lembrá-la de que dinheiro e poder não compram respeito, senhora Duarte. E se a senhora respeita os colegas com quem dividiu a cena em mais de 50 anos de carreira (inclusive os aposentados, outra categoria que esse governo negligenciou) e, principalmente, se respeita as personagens que marcaram sua carreira, peço-lhe que fique do lado da classe artística e não integre um governo que a desprestigia.

Atenciosamente,




                                  Renan II de Pinheiro e Pereira.
Advogado, escritor e membro do IHGRN.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Não suavizei Tem muita coisa escrita - Luzia Pessoa


Em menos de dois anos as pessoas mais importantes da minha família morreram. Sem eufemismos. A morte andou viva lá por casa. Levou meu pai,  a minha mãe e de forma impiedosa, em menos de sessenta dias da orfandade,  levou a minha querida irmã.  uma irmã que era uma irmãe. 

Fiquei devastada. Com o passar dos dias veio um lampejo de coragem para a  travessia do deserto sem  oásis. Achei, por muitas vezes, ter ido a nocaute, que estava desprovida de toda e qualquer espiritualidade que me desse coragem ou mitigasse a luta.

Os remédios sintéticos só empurravam tudo para trás das cortinas da casa dos meus pais. Qualquer brisa fraquinha empurrava essas cortinas e lá estava a via crucis com todas as estações, incluindo o calvário.

A minha cidade natal, Currais Novos, perdeu grande parte do encanto para mim. 

Precisei perder  aquilo que era “tudo” para perceber como o “nada” é importante. Chamam isso de resiliência. Eu digo que escapei fedendo...aliás, escapei não, vivo na peleja para  escapar. Hoje acho a trivialidade da vida  encantadora. Por isso agradeço a Deus pelos mínimos presentes do meu simples cotidiano. Agradeço por abrir os olhos de manhã ( e sobre olhos quem me conhece sabe da cruz que carrego com a minha visão), agradeço por mais uma noite e por ter perdido o medo da morte que mesmo com as vivências "hospitalentas", essa realidade era algo que me causava um certo medo...

Sei da importância de cuidar da saúde, mas tenho a consciência  da ciência que não há garantias em nada. Por mais cuidado que se tenha,  somos instantes. Daí a importância de sermos bons sem pensar em recompensas. Como diz a canção: 

"Na vida é preciso aprender
 Se colhe o bem que plantar
 É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar"

Estou realmente focada nisso, no aqui, no agora. Estou onde estou. Solta no mundo, sem o controle de nada. Mantendo minha mente atenta ao hoje,  ao instante. Esforçando-me para fazer este instante valer a pena e não perder mais tanto tempo e energia com o que insiste em martelar na minha caixa pensante. É um enorme desafio! Mas decidi me dar esse presente. Portanto se você me encontrar por aí...onde eu estiver , estarei inteira. Se corro ou se fico,  se falo ou calo, se como ou fecho a boca, se tenho  a mente aperreada, se leio três livros de uma vez, se tenho mil inquietações, eu me aceito como eu sou. 

Reconheço que não tenho saúde mental para discutir política partidária. Isso não significa que sou uma omissa. Digo isso porque não posto em redes sociais nada além de pequenas reflexões, poesias, alguma utilidade pública, músicas,  uma ou outra fotografia , principalmente de paisagens , dos meus bichinhos de estimação, minhas rosas do deserto e banalidades. Nada contra quem ergue bandeiras, gosta de posts ideológicos ou com muitos registros da vida pessoal. Entendo que não  tenho estrutura para o  tribunal inquisidor da internet. Sabendo usá-la  ( difícil é saber)  é uma excelente ferramenta de interação, trabalho, informação, diversão e aprendizagens múltiplas. Sobre essa minha postura informo que  é porque não tenho paciência para quem se sente Deus ou don@ de Deus, chei@s de verdades absolutas, daquel@s  que têm a religião mais certa e sabem as  formas corretas  de viver a vida d@s outr@s.

Fernando Pessoa em 1966 escreveu:
"Onde nada está tu habitas" 

E eu me esforço para ter os meus  vazios preenchidos. 

Ainda, parafraseando Pessoa, peço com todas as forças do meu coração:
Protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta tua e  livra-me das armadilhas de mim.

Miudinha, vou preferindo fazer (mostrando que é possível mudar sem imposições) a falas,  que, nesses tempos de hoje,  incitam dissabores. 

Há ódios, preconceitos, intolerâncias , invejas e outro monte de sentimentos ruins  dentro de algumas pessoas que aproveitam a efervescência política para tirar essas coisas  Dali, das suas Vénus de Milo com gavetas.

Graças eu dou a Deus ( gosto de falar nEle mesmo sem lugar de fala porque sou de pouca fé). Graças eu dou a Deus por ter discernimento e sensatez de não julgar meus amigos que pensam diferente de mim.

Nenhuma posição política tirou véus nem desvelou faces  dos meus verdadeiros  amigos e parentes. Os meus amigos e parentes seguem humanos que erram, que são  bons, autênticos, honestos, solícitos e com as mesmas qualidades que me fizeram considerá-los e elegê-los para habitarem o meu coração. 

Acompanho com tristeza as contendas , as paixões e ódios por políticos acabando com vínculos afetivos e o pior de tudo : eles  , os políticos,  não sabem quem somos e o valor que temos uns para os outros.

Eles seguirão atravancando os nossos caminhos e nós não poderemos Quintanear... não seremos passarinhos , não faremos e nem habitaremos ninhos.  

Dediquei quase 33  dos meus 54 anos de vida  ao serviço público hospitalar. 
Trabalhar em serviços de saúde só sabe quem tem esse labor. Como a dor do outro ensina, meu Deus...como a consciência de que não somos NADA é sentida por nós profissionais dessa área...como é grande a luta para não fazer transferências da dor do outro em nós sem nos desumanizar.  

Hoje sou professora. Sim, sou professora. Amo o que faço, chega a ser terapêutico esse ofício. Entendo demais o cansaço  e a "desacreditaçao" dos meus pares no tocante ao declínio da Educação e a desvalorização dos professores.

Realmente é desanimador. Há momentos que eu tenho a nítida impressão que o mundo virou mesmo uma realidade distópica.

Ser professor ou professora não é sempre divino e maravilhoso.  Às vezes acho que devia deixar para outros o meu lugar. Outras vezes não me vejo noutro canto a não ser naquele espaço mágico, cheio de possibilidades de transformações que é a sala de aula e os meus sempre queridos estudantes. Eu e eles , eles e eu e as nossas vidas sendo tocadas ora por conhecimentos curriculares, ora por saberes sobre a vida além dos muros da escola. Eu sou muito apaixonada por todos os estudantes que cruzaram ou cruzam o meu caminho. É amor mesmo o que sinto. Mesmo quando é ruim eu gosto e sou  consciente que a docência é sinônimo de coragem, fadiga "fisicomental".  Mesmo assim eu gosto e gosto muito. 


O estandarte da alegria segue, a duras penas , sendo meu cartão de apresentação. Ademais deixo saudações aos que têm coragem de ser uma pessoa de verdade e ser de verdade inclui defeitos e aqui e ali uma virtudezinha que Deus dá. 

Não há nada que eu tenha dito até aqui que vogue para outrem. Não sou exemplo nem para mim.  

Sempre fui de poucas ambições. Urge dentro do meu espírito a busca Graal pelo prumo, o nível do pedreiro para me equilibrar nessa corda bamba que é viver um dia de cada vez, RESISTINDO com ALEGRIA e isso me basta.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

TUDO O QUE É SÃO PODE FICAR DOENTE: A PSEUDO TRANSCENDÊNCIA - Leonardo Boff


TUDO O QUE É SÃO PODE FICAR DOENTE:
A PSEUDO TRANSCENDÊNCIA

Há também uma pseudo transcendência que a cultura atual promove de forma inflacionada. Acho que todo esse universo do marketing, do showbizz, do entretenimento nacional e mundial são os campos onde se produz uma experiência de pseudo transcendência. As menininhas ficam loucas quando vêem um artista de televisão e podem tocá-lo. Deliram quando encontram a Xuxa, porque a Xuxa é uma fonte de transcendência construída artificialmente. Quando o padre Marcelo Rossi canta, muitos cristãos deliram. É como se baixasse o Espírito Santo neles por força da evocação de emoções. Julgo tais manifestações de pseudo transcendência.

E a maior de todas elas é a droga. Ela permite uma viagem fantástica, feita não pela espiritualidade, mas pela química. A religião, a arte, o cinema podem ser drogas. Com elas rompem-se todos os limites, vive-se a onipotência e se voa para além dos limites da condição humana cotidiana. O problema da droga não é a viagem, é a volta da viagem, quando então não se suporta mais o cotidiano. O cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a obrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, de pagar contas, tudo isso é estafante e enervante. Então, é muito melhor viajar, saltar para fora dessas limitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade e a vida.

Julgo que o critério para saber se a transcendência é boa, se potencia o ser humano ou o diminui, está na resposta que damos a essa pergunta: em que medida tal experiência ajuda a enriquecer e a assumir o cotidiano? Ela representa uma fuga ou um álibi para o cotidiano, um endeusamento e uma fetichização daquilo que representa sentido para nós? Se a experiência não amplia nossa liberdade, não nos dá mais energia para enfrentar os desafios do cotidiano, comum a todos os mortais, não nos faz mais compassivos, generosos e solidários, podemos seguramente dizer: fizemos uma experiência de pseudo transcendência. Saímos mais empobrecidos em nossa realidade essencial, que é a de existências que se constroem com decisões de liberdade, assumindo honestamente os desafios e estando à altura deles. Precisamos compreender e assimilar em nossas atitudes que não é só poeticamente que habitamos o mundo, quer dizer, com enlevo, transfiguração e alegria, mas também habitamos o mundo prosaicamente, vale dizer, com sua opacidade, com seus limites e seu enraizamento inevitável. Dessa situação objetiva nenhuma droga nos liberta, só uma existência que saiba equilibrar transcendência e imanência como dimensões de toda existência humana.

Então, as pseudo transcendências exploram essa capacidade de ultrapassagem do ser humano, mas não lhe conferem a experiência de uma plenitude duradoura. Não é a droga que permite a experiência da viagem, é a química presente nela. É diferente a viagem feita a partir de um trabalho de busca de sua identidade e de um caminho espiritual mais árduo. Um trabalho onde domesticamos passo a passo os demônios que nos habitam, sem recalcá-los, sem cortar-lhes os chifres, mas controlando-os e canalizando a energia poderosa deles para o nosso crescimento. Porque eles ensejam uma experiência mais global da realidade, permitindo que a luz ilumine as trevas e que a nossa parte sã cure a parte doentia. Essa é a experiência de transcendência fecunda, verdadeiramente humana.

Do livro TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA