Se um poema serve para alguma coisa prática, ele está definitivamente arruinado. Algo nele há que se desarranjou e desgarrou como o filho de um hippie que defende o capital e intervenções militares. Se o bom poema não tem utilidade alguma, o poema que serve para algo é mais inútil ainda.
A discussão é antiga, inúmeros são os poetas, críticos, filósofos e rabiscadores de banheiros de rodoviária que têm repetido a cantiga perene: a poesia não serve para nada. Pergunte a um poeta, por exemplo. Eu mesmo nunca usei um poema para tirar a barba, para juntar folhas no quintal da casa em que não vivo, apertar parafusos ou tosar um cão. Um poema não estraçalha uma pedra nem pode ser esfregado na louça até que ele ou ela brilhe.
Dia desses, numa mesa redonda em que tive o prazer de conversar sobre Literatura com o amigo Alessandro Nóbrega, o mediador e também poeta Gilberto Cardoso provocou-nos perguntando sobre essa tal inutilidade. E concordamos à mesa que um poema não serve para nada cuja utilidade seja puramente prática, objetiva, clara e funcional, como um parafuso, uma furadeira ou uma broca de metal. É verdade: um poema útil é um poema com defeito de fabricação, um poema quebrado, que carrega um ferimento letal à boca do estômago e sangrará até a morte.
“Serve então para que o poema?”, insistirão o engenheiro ou o mecânico. E a resposta continuará sendo: “serve para nada, está claro”. E isso basta. Que mania de gente besta esta nossa de querer dar uma utilidade a tudo, de querer mensurar, quantificar, objetivar e dar funcionamento às coisas! “Otimizar”, dizem agora. Um poema não otimiza nada sem ter vomitado o fel de uma baleia antes. O poema que serve para alguma coisa está quebrado, eu insisto.
É preciso remendá-lo, cozê-lo em trapos muito rotos até que ele esteja vestido gloriosamente de vergonha, até que ele carregue no desarranjo das cores a natureza de seu tempo; tem que se meter de estofo no bucho do poema a palha, o agave, o sangue coagulado dos porcos, as nuvens, os nenúfares e as espumas de onde Vênus brotou nua em carne e concha. Deve se esfregar um poema na pedra até descer sangue, ranho ou a medula do espírito, a alma do osso ou o osso da alma. Lima-se o poema no corpo desejado até que o gozo faça nascerem flores de lótus no chão em que pisa o ser amado ou cogumelos venenosos de quem se odeia. Mas o poema não pode servir para não estar quebrado.
Quanto mais inútil um poema, mais celebrada deve ser a palavra. Glorioso quem é capaz de inventar essa máquina de palavras cuja ossatura tem a fragilidade dos gravetos e a pele é pura pluma caída do ventre de um cão. O poema que não serve para nada, este sim, está maduro, desejoso e pronto para o uso!
"A poesia são os nervos do entulho", José Gomes Ferreira
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