sábado, 2 de junho de 2012

VIAGEM PÓSTUMA - Antoniel Medeiros


Deus, com sua imensurável misericórdia, sempre reserva um dia a cada dez anos para que as almas do céu, inferno e purgatório se encontrem. Desta forma, as famílias separadas pelo julgamento divino se reencontram, além de ser uma excelente oportunidade para conhecer pessoas novas, viventes em outras dimensões.

Foi no meu primeiro (e único até o momento) dia destes que conheci o colega Brás Cubas. Ele me falou que conhecia um local no céu que servia como correio entre este e a Terra, e que já tinha escrito “com a pena da galhofa” para a nossa antiga casa. O entreguei este relato escrito e lho pedi que enviasse. Se você, leitor, estiver lendo isto significa que, de alguma forma, isto veio do céu e caiu em suas mãos. Não sei se por destino ou coincidência.
Não trago aqui nada de sobrenatural. Mas, tenho a dizer coisas que despertam a curiosidade humana: falo do procedimento natural ao chegar à SEDE. Daí o leitor deverá perguntar: o que seria SEDE? Calma, explico. SEDE é uma sigla que significa Sala de Espera de Destinação Espiritual, é nesta que sabemos para onde vamos: céu, inferno ou purgatório.
Após ter sido perfurado por um tiro em um confronto com a polícia, estava eu lá com mais três pessoas, na SEDE. Nenhum de nós quatro entendia como aquilo tinha acontecido. Alguns segundos após minha chegada, apareceu um anjo sorrindo para todos nós. Falou:
- Saudações. Sou o “Finanjo”, o anjo responsável pelas finanças do planeta Terra. Ponham a mão no bolso direito e entenderão melhor o que estou dizendo.
Ao tirar a mão do bolso, vi que eu tinha duas notas. Cada uma delas tinha um anjo desenhado e o número cem.
- Bom, o Criador me forneceu uma tabela com o valor de cada conduta exercida por vocês na Terra. Cada ato corresponde a um valor, sendo que as más condutas correspondem a ônus financeiro.
Ainda meio sem entender o que estava acontecendo, pensei que estava numa boa situação, afinal de contas, apesar de ter cometido vários crimes, eu ainda tinha um saldo positivo, pois tinha duas notas.
O anjo apontou para uma senhora que estava ao meu lado, e a chamou para perto do balcão onde se encontrava. Disse:
- Bom, pelo que vejo em sua ficha, a senhora viveu boa parte de sua vida numa casa que cuidava de crianças órfãs e idosos. Sempre foi muito prestativa a todos eles. Vejo que você ganhou 2000 Contos Celestiais, correto?
-Sim, é isso mesmo.
- A entrada no paraíso custa 1000 contos celestiais...
- O que?(eu disse).
O anjo olhou para mim com olhar de reprovação e continuou:
- Como dizia, a entrada no paraíso custa 1000 contos celestiais. Você tem mais mil, com estes pode conseguir algumas regalias.
Por trás do balcão onde se achava o anjo, havia vários produtos celestiais. Resumindo, com o dinheiro celestial restante, a senhora comprou um par de asas por 500 contos, algumas aulas de voo por 300 e uma harpa por 200.
Após a entrada triunfal da velhinha no céu, o anjo chamou o segundo. Este se mostrou muito curioso. É que por trás do anjo havia dois quadros pregados na parede. Um tinha a foto da Virgem Maria, o outro de Adolf Hitler. O homem astuto perguntou:
- O que são estes quadros?
O anjo respondeu:
- São os recordes financeiro-celestiais obtidos até hoje.
- Como assim?
- A imaculada Virgem Maria conseguiu a quantia de 1.000.000 de Contos Celestiais. Enquanto que este senhor da foto chegou aqui com um débito de 100.000 Contos Celestiais, o maior da história.
- Ah é? E depois da Virgem Maria quem vem?
- Moisés, com a incrível marca de 200.000.
- Discordo. Mas, e José do Egito? Até de mulher ele fugiu pra fazer a vontade do Criador.
O anjo sorriu. Ficou de costas e começou a procurar alguma coisa nas gavetas que ficavam atrás dele. Ao achar o que queria nos mostrou uma foto da mulher de Potifar. A mulher era gorda, careca, banguela e tinha uma verruga no rosto. 
- Ele fugiu por que tinha de fugir mesmo. (caçoou o anjo)
- Tá bem, eu tenho aqui comigo 1000. Você disse que era o dinheiro pra ir pro céu, não é isso?!
- Sim, isso mesmo. Pode entrar, mas você não terá regalias.
O terceiro “defunto” se levantou rapidamente, após a subida do segundo. Disse educadamente:
- Perdão por falar sem ter sido chamado, mas é que não consegui me controlar. Não tenho a quantia suficiente para entrar no paraíso. Só tenho 500 contos aqui. O que vai acontecer comigo?
O anjo respondeu:
- Não se preocupe, meu caro, este é exatamente o mínimo necessário para se ir para o purgatório...
- Ah minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, agora lascou. (eu disse)
O anjo pediu silêncio proferindo um categórico shiwwww.
- Você irá para o purgatório e lá terá oportunidade de conseguir o dinheiro restante.
O rapaz foi embora e ficamos só nós dois: o anjo e eu.
- Agora você, rapazinho.
Fui lentamente até onde estava o anjo.
- Vejo aqui na sua ficha que você cometeu muitos crimes na Terra, mas era um homem que prezava pela sua família, inclusive amando seus filhos. Fez umas boas ações na mocidade, isto também conta. Por isso, agradeça a Deus, você ainda teve um saldo positivo de 200 contos celestiais.
- Não teria como fazer um precinho mais camarada para o purgatório?
- Não, não estamos na Terra nem tampouco no Brasil. Aqui a tabela é seguida à risca.
- É... então este dinheiro que recebi não servirá para nada. Vou para o inferno mesmo.
- Guarde-o será de grande serventia por lá.
Antes que eu pudesse falar, o anjo puxou uma corda que fez com que o chão que estava sob meus pés abrisse. Passei umas duas horas caindo, até que cheguei ao lugar que eu temia: o inferno.
Chegando lá, apareceu um capeta que me falou:
- Bem vindo, cabra. Sou o responsável pelo setor dos criminosos. Pelo que vi na sua ficha você cometeu vários crimes, deve estar em débito.
- Não, não. Tenho aqui duzentos contos celestiais. Para que serviriam aqui?
Surpreso ele disse:
- Nossa... você ainda conseguiu isso? Andam muito generosos lá em cima. Como falei, sou responsável pelo setor dos criminosos, com estes contos celestiais você poderá escolher em qual subsetor ficará. Se não tivesse nada iria para o lugar que eu escolhesse.
- Então você me mostrará estes subsetores?
- Sim, vamos.
O primeiro local que me mostrou foi o subsetor dos traficantes de entorpecentes. Neste vários capetas ficavam fumando e a fumaça se concentrava apenas no rosto da “vítima”.
- Gostou do subsetor? Bem confortável, não acha? O único incômodo que terá que suportar é a fumaça no rosto 24 horas por dia. Vá por mim é um dos melhores do inferno.
- Deus me livre, pode me mostrar outro.
Daí fomos ao subsetor dos homicidas. Neste o indivíduo experimentava todas as dores mortais possíveis, mas, obviamente, não morria, pois já estava morto. Funcionava desta forma: havia um capeta curandeiro para deixar o infernente (pessoa do inferno) curado para ser quase morto de novo. Vários tiros, cura, várias facadas, cura, afogamento, cura, queima, cura, e assim sucessivamente, de maneira perpétua.
Ao ver aquela cena eu disse:
- Meu Deus, piorou. Homem, me leve pra outro canto, pelo amor de Deus. O da fumaça era “fichinha”.
Fomos ao subsetor dos estupradores. Este era o pior de todos. Lá os homens ficavam nus, presos a vários cabos de aço, com todo o corpo envolto por um pano preto. Este pano possuía um buraco no local onde o leitor malicioso deve estar imaginando neste momento. Por trás do infernente, sempre havia um capeta nu que corria cerca de 50 metros, e sempre acertava o buraco do pano e os que estivessem além deste.
Vendo que eu estava insatisfeito, o capeta disse:
- Já estou vendo que você não vai querer. Não vou mais mostrar os subsetores a você, pois a tendência é piorar.
- Pior do que isso aí? Não tem como não!
- Em todo caso, tenho uma proposta a fazer.
- Qual?
- Você já foi político?
- Não, nunca. O mais próximo que cheguei da política foi quando fui líder de classe na 4ª série.
- Serve. Vou mostrar a você o setor dos políticos, que fica aqui vizinho ao setor dos criminosos.
Chegando ao dito setor, meus olhos brilharam. Havia um campo de golf imenso, vários bares, mulheres, carros de luxo passando por todos os lados, enfim, tudo que não se imagina existir no inferno.
Entusiasmado falei:
- É aqui mesmo! É aqui e não abro mão.
- Sua escolha não tem volta. Está vendo aquela porta? Se eu passar por ela você não poderá mais sair daqui, pois só os autorizados podem passar pelas portas.
- Sim, não há dúvida. Ficarei aqui.
- Está bem, então seja bem vindo ao setor dos políticos, “adiabo” (adeus em infernês), meu caro.
Ao passar pela porta tudo mudou. Havia todos os castigos que eu tinha visto no setor de criminosos e mais um pouco. As coisas boas que eu tinha visto desapareceram. Fiquei indignado e desesperado.
O capetinha que me pôs naquela enrascada apareceu na porta rindo sarcasticamente.
Perguntei:
- Por que você mentiu para mim?
Ele soltou uma gargalhada e disse:
- Não menti não, aqui o sistema é este mesmo.
- Como assim?
- É que quando você veio era período de campanha, depois da escolha as coisas mudam sempre.
Sumiu, e eu fiquei aqui. Era basicamente isto que queria relatar neste texto: como cheguei até aqui. Gostaria também de alertar os leitores: jamais escolham o setor dos políticos.

Antoniel Medeiros

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